José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
José Mauro de Vasconcelos - Meu pé de laranja-lima (pdf)(rev)
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
om existir um segredo. E o Português fazia todas as minhas vonta<strong>de</strong>s nesse<br />
aspecto. Tínhamos jurado, <strong>de</strong> morte, que ninguém <strong>de</strong>veria saber da nossa amiza<strong>de</strong>.<br />
Primeiro, porque não queria dar carona à garotada. Quando vinha gente conhecida,<br />
ou mesmo Totóca, eu me abaixava. Segundo, porque ninguém <strong>de</strong>via atrapalhar o<br />
mundo <strong>de</strong> conversas que a gente tinha para conversar.<br />
— O senhor nunca viu minha Mãe? Pois ela é índia. Filha <strong>de</strong> índio mesmo.<br />
Todos lá em casa são meio índios.<br />
— E como saíste clarito assim? E ainda por cima com estes cabelos loiros,<br />
quase brancos?<br />
— É à parte <strong>de</strong> Português. Pois Mamãe é índia. Bem morena e <strong>de</strong> cabelos<br />
lisos. Só Glória e eu é que saímos assim gato-ruço-<strong>de</strong>-mau-pêlo. Ela trabalha nos<br />
teares do Moinho Inglês para ajudar a pagar a casa. Ela, no outro dia, foi suspen<strong>de</strong>r<br />
uma caixa <strong>de</strong> espulas e sentiu uma dor danada. Precisou ir ao médico. O médico<br />
<strong>de</strong>u uma cinta a ela por causa <strong>de</strong> uma hérnia que rebentou. Sabe que Mamãe até<br />
que é boazinha comigo. Quando me bate, pega aquelas varinhas <strong>de</strong> guanxuma do<br />
quintal e me acerta nas pernas só. Ela vive tão cansada que quando chega em casa<br />
<strong>de</strong> noite, nem tem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> conversar.<br />
E o carro andava e eu tagarelava.<br />
— Danada é minha irmã mais velha. Namora<strong>de</strong>ira que não tem fim. Quando<br />
Mamãe mandava ela tomar conta da gente e passear, recomendava que não fosse<br />
para cima da rua, porque sabia que na esquina ela tinha um namorado esperando.<br />
Pois ela ia para o lado <strong>de</strong> baixo e tinha outro namorado esperando também. Lápis<br />
nem podia existir, porque ela vivia esc<strong>rev</strong>endo cartas pro namorado...<br />
— Chegamos...<br />
Estávamos perto do Mercado e ele parava no lugar combinado.<br />
— Até amanhã, Pirralho.<br />
Ele sabia que eu ia arranjar um jeito <strong>de</strong> dar um pulinho no ponto <strong>de</strong><br />
estacionamento e tomar refresco e ganhar figurinhas. Eu já conhecia até os horários<br />
em que ele não tinha muito que fazer.<br />
E esse jogo já durava mais <strong>de</strong> um mês. Muito mais. Agora nunca pensei que<br />
ele pu<strong>de</strong>sse ficar com aquela cara <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong> triste como quando contei as<br />
histórias <strong>de</strong> Natal. Ficou até com os olhos cheios d'água e passou as mãos nos meus<br />
cabelos, prometendo que nunca mais eu <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ganhar um presente nesse dia.<br />
E os dias andaram sem pressa e sobretudo muito felizes. Até que lá em casa<br />
começaram a notar a minha transformação. Eu já não fazia tantas travessuras e<br />
vivia no meu mundinho <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> quintal. Verda<strong>de</strong> que algumas vezes o diabo<br />
vencia os meus propósitos. Mas já não dizia tantos palavrões como antigamente e<br />
<strong>de</strong>ixava em paz a vizinhança.<br />
Sempre que ele podia inventava um passeio e foi num <strong>de</strong>sses passeios que<br />
ele parou o carro e sorriu para mim.<br />
78