Ele agitou o braço livre, lançando mais umas gotas que se misturaramà terra. — Estudantes.— Julgava que hoje estavas a dar aulas.Peter era um artista. Construía enormes esculturas cubói<strong>de</strong>s com tubos,fios <strong>de</strong> ferro e metal retorcido, juntando-lhes ainda objectos que encontrava,como estruturas <strong>de</strong> carrinhos <strong>de</strong> bebé e manequins <strong>de</strong> alfaiate. Nãoconseguia ven<strong>de</strong>r gran<strong>de</strong> parte das suas obras e dava cursos <strong>de</strong> arte duranteo Verão, para arranjar mais algum dinheiro.— Fizemos gazeta. E pensei que estivesses ocupada. Ouve. Já que ambosnão estamos a trabalhar, anda daí e vamos lanchar a qualquer lado.— Mas tu estás molhado.— Tu estás suficientemente seca para nós os dois. — Beijou-a <strong>de</strong> novo,na ponta do nariz. — Linda, seca, e quente. Tens fome? Vamos lá. Sconescom natas. Eu sei que te apetece.Ela sorriu-lhe. Havia um café próximo dos portões dos parques.Dirigiram-se juntos para lá, com Peter a dançar <strong>de</strong> uma maneira cómica, <strong>de</strong>cada vez que os pés nus pisavam uma pedra mais aguçada.No caminho, encontraram um escultor, que tinha o atelier ao lado do<strong>de</strong> Peter. Este apresentou-o a Alice e <strong>de</strong>tiveram-se a conversar.— Ia numa chata e Alice encontrava-se na margem, portanto o quepo<strong>de</strong>ria eu fazer, senão mergulhar e nadar até junto <strong>de</strong>la? — explicou Petera rir.— Hum, levar o barco até à margem e <strong>de</strong>scer? — Mark era uma pessoaterra-a-terra.— Tu não tens alma — escarneceu Peter.Acabaram por se dirigir todos para o café.Alice seguia ao lado <strong>de</strong> Mark, e Peter caminhava à frente dos dois, virando-separa trás para os ver e falar ao mesmo tempo. Já no exterior dosportões do parque, quando passavam junto ao contentor <strong>de</strong> uma obra, reparounuma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> escritório, já <strong>de</strong>sprovido do assento estofado e dascostas. Içou-a pelos pés <strong>de</strong> metal e levou-a consigo, fazendo-a voltear pelalança, enquanto falava.Encontraram uma mesa livre, entre a pequena frisa da esplanada docafé, e amontoaram-se à sua volta. Peter <strong>de</strong>spiu a camisa e esten<strong>de</strong>u-a sobreo esqueleto da ca<strong>de</strong>ira resgatada. Tinha os braços e os ombros bem musculados,graças ao esforço <strong>de</strong>senvolvido a transportar materiais pesados e amanobrar o maçarico <strong>de</strong> soldar. Das calças molhadas, saía um leve vapor.Alice serviu o chá quanto este chegou. Os outros dois conversavamsobre arte.Escutava, meia distraída, aquela discussão inflamada, à qual lhe parecianunca ter prestado muita atenção <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que conhecera Peter. De acor-22
do com a sua experiência, a arte estava sempre envolvida por argumentos.Era algo profundamente subjectivo. Para Pete, uma obra <strong>de</strong> arte podia sermagnífica e marcadamente impressionante, enquanto outra seria já tímida,um <strong>de</strong>rivativo da treta ou um emaranhado fora <strong>de</strong> moda (para utilizar assuas palavras), mas Alice nunca conseguiria <strong>de</strong>scobrir qual era o quê, ouse haveria alguma evidência empírica em que essas opiniões se baseassem.Achava difícil prever o que Pete iria admirar e o que iria rejeitar, e sempreque assimilava um léxico que po<strong>de</strong>ria pelo menos aplicar-se à discussão <strong>de</strong>um assunto, toda a linguagem entrara já num processo <strong>de</strong> mudança.Ao fim e ao cabo, achava que seria tudo uma questão <strong>de</strong> gosto e quenão havia uma forma <strong>de</strong> o medir ou avaliar.A ciência era outra coisa. Sendo ela uma cientista e filha <strong>de</strong> cientistas,Alice transportava no sangue a lógica e a razão. O conhecimento implicavaa medição, a <strong>de</strong>monstração, a prova. As teorias po<strong>de</strong>riam passar a dogmas,mas era necessário fundamentá-las com dados concretos. Obtidas e analisadasas provas, o conhecimento ia sendo sedimentado <strong>de</strong> forma gradual masfirme, através <strong>de</strong> pequenas acreções sobrepostas em camadas, a partir dasquais se formavam baluartes <strong>de</strong> factos inatacáveis. Era natural ocorrerem<strong>de</strong>bates e teorias antagónicas, e havia uma competitivida<strong>de</strong> internacionale pessoal, mas o movimento principal residia na construção e colaboraçãomútuas. Ao contrário da arte.— Qual é a piada? – perguntou-lhe Mark. Alice não se apercebera <strong>de</strong>que estava a sorrir.— Não é nada, <strong>de</strong> facto. Estava só a ouvir.— Mas o que é que tu achas?A luz do sol inundava a mesa. Na chávena <strong>de</strong> Alice, o chá reflectiauma auréola <strong>de</strong> bronze cintilante. Pete espreguiçou-se na ca<strong>de</strong>ira, numasilhueta flexível e <strong>de</strong>scontraída, sorrindo-lhe abertamente. A sua vida emcomum era constituída por uma série <strong>de</strong> pequenos encontros como este.Costumavam conviver com os amigos, lanchar ou jantar, ou irem juntos abares. Iam a festas e davam também as suas – <strong>de</strong> facto, ia até haver uma emsua casa no dia seguinte, ao começo da noite. Peter era uma pessoa sociávele para ele nada lhe dava mais prazer do que ter um monte <strong>de</strong> gente à suavolta. Isso significava que ela não o tinha muito tempo junto <strong>de</strong> si, mas nãose importava. A vida proporcionava-lhe aquilo que ela <strong>de</strong>sejava.Alargou ainda mais o seu sorriso. — Acho que vou comer outro scone,antes que Pete acabe com o que resta.Não lhe apetecia ser incluída numa discussão interminável sobre arte.De qualquer maneira, Pete nunca ouvia os que os outros diziam. Este paroucom quase meio scone a caminho da boca e voltou a colocá-lo no prato.Depois <strong>de</strong> lhe adicionar mais compota, transferiu-o para o prato <strong>de</strong> Alice.23
- Page 2: T í t u l o : Sol à Meia-NoiteA u
- Page 5 and 6: Capítulo UmO vento soprava da dire
- Page 7 and 8: ficar para o dia seguinte, o que eq
- Page 9 and 10: Ele não sabia onde iria estar quan
- Page 11 and 12: — Edith, não percebo porque est
- Page 13 and 14: alcance do outro. A seguir enfrento
- Page 15 and 16: para o mandar suturar. Chegou a ter
- Page 17 and 18: cópteros e das aeronaves a levanta
- Page 19: A blusa da rapariga ergueu-se um po
- Page 23 and 24: pequena mesa rústica, e ainda uma
- Page 25 and 26: Nessa manhã, Margaret respondia a
- Page 27 and 28: tiu que a filha a conduzisse suavem
- Page 29 and 30: são. — Tratava-se sempre da tele
- Page 31 and 32: disposição as infra-estruturas de
- Page 33 and 34: posta, nem teses sem provas. Gostav
- Page 35 and 36: nente científica respeitável; pro
- Page 37 and 38: tas, como um desafio de despedida.
- Page 39 and 40: — Sabes uma coisa, Al? Quando sor
- Page 41 and 42: Alice ficou completamente petrifica
- Page 43 and 44: Capítulo Quatro— A tua mãe não
- Page 45 and 46: puxava o fecho das calças. Depois,
- Page 47 and 48: conseguir descobrir a lógica que a
- Page 49 and 50: cer e começar a correr por todo o
- Page 51 and 52: nados numa sociedade em desintegra
- Page 53 and 54: de poder vir de avião para casa, a
- Page 55 and 56: soa estranha que escutasse o que se
- Page 57 and 58: De repente, viram uma enfermeira a
- Page 59 and 60: dido coisa alguma. Tudo quanto fize
- Page 61 and 62: Capítulo CincoCom a aproximação
- Page 63 and 64: pela cabina de rádio-transmissão,
- Page 65 and 66: pessoas. No quarto reservado ao alo
- Page 67 and 68: O céu tinha escurecido, estando ag
- Page 69 and 70: O céu carregara-se entretanto de n
- Page 71 and 72:
Parecia ter-se já estabelecido que
- Page 73 and 74:
Capítulo SeisAlice estava de pé,
- Page 75 and 76:
As paredes do átrio da Sullavanco
- Page 77 and 78:
Por detrás das janelas fumadas da
- Page 79 and 80:
sobre ela, como se isso lhe transmi
- Page 81 and 82:
a exploração e a descoberta cient
- Page 83 and 84:
— O que posso eu fazer? — pergu
- Page 85 and 86:
— Oh, Deus — exclamou Becky, co
- Page 87 and 88:
chas acastanhadas eram as suas pró
- Page 89 and 90:
vazia - tudo o que não necessitava
- Page 91 and 92:
um milhão de centros nervosos.Porq
- Page 93 and 94:
dos CDs. Comeu muito pouco, mas est
- Page 95 and 96:
Heathrow a piscar à distância. Tr