absurdo sentir inveja naquela ida<strong>de</strong>. Alice regressaria em seu lugar. Através<strong>de</strong> Alice, ela iria viver na Antárctida mais uma vez.— Finalmente chegaste. Por on<strong>de</strong> andaste tu, quando estou morta porouvir tudo o que se passou? Senta-te. Não, espera. Podias pedir àquela raparigapara nos trazer um chá, não te parece?Alice beijou Margaret no alto da cabeça, on<strong>de</strong> se percebia a pele róseae brilhante do crânio, através das ma<strong>de</strong>ixas do cabelo já a enfraquecer.— Quer tomar chá, antes <strong>de</strong> eu lhe contar?— Não sejas tão exasperantemente maçadora. Poupa-me o sofrimento.— Sim. Eu vou. Está contente?Com a satisfação, o rosto Margaret amoleceu por momentos, enquantose a<strong>de</strong>nsava o emaranhado <strong>de</strong> linhas <strong>de</strong>lgadas sob os seus olhos. — Quebom — comentou serenamente, voltando a controlar a sua expressão.Alice sentou-se e Margaret escutou-a atentamente, enquanto ela lhe<strong>de</strong>screvia a hora que tinha passado com Richard Shoesmith.— Conheci o avô, sabes? — informou Margaret.Gregory Shoesmith era um homem já idoso, sentado com uma mantaescocesa sobre os joelhos e a bengala encostada à ca<strong>de</strong>ira — tal comoeu, agora. Para on<strong>de</strong> fogem o tempo e as forças? — Mas segurara-lhe a mãoentre as suas, e inclinara-se, até os rostos quase se tocarem. Depois dissera— ambos fomos uns privilegiados. Vimos lugares que nunca iremos esquecer.— Assistira à guerra e a muitas mortes, e tivera uma vida longa, mas ogelo preenchia os seus pensamentos. Mesmo já velho, era um homem cheio<strong>de</strong> força.Alice não ficou surpreendida. — A mãe conheceu toda a gente.Margaret escutava-a, acenando com a cabeça a cada passo do que Aliceia relatando, mas estava dominada por uma massa fervilhante <strong>de</strong> memórias.Estas rodopiavam ao seu redor, cada vez mais velozes e <strong>de</strong>nsas como umatempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> neve. Alice iria herdar aquelas memórias. Seriam diferentesnos seus aspectos concretos, mas feitas da mesma matéria. Era comose houvesse a transmissão <strong>de</strong> genes <strong>de</strong> mãe para filha. A Antárctida foi feitapara mim, pensava Margaret. E será também feita para a minha filha, eAlice precisa <strong>de</strong>la. Foi sempre muito controlada e agora vai florescer.Margaret não sentia receios pela filha, tal como não os tivera em relaçãoa si própria.A chuva começara a cair e escorria pelas janelas em regatos grossos.Aquela visão fazia-a a sentir os olhos turvados. Para contrariar a sensação,olhou para baixo, para as mãos pousadas sobre o cobertor azul macio quelhe cobria os joelhos. Para ela era sempre surpreen<strong>de</strong>nte constatar que aquelesapêndices rugosos e <strong>de</strong> veias salientes, com articulações inchadas e man-88
chas acastanhadas eram as suas próprias mãos, antes tão fortes e hábeis.Por vezes, as dores nas articulações e no peito pareciam também pertencera outra pessoa que se <strong>de</strong>bruçava sobre ela, e <strong>de</strong> cujo fardo ela se conseguialibertar e distanciar ligeiramente.Alice falava-lhe agora sobre testes médicos.— Não te preocupes com isso — tranquilizou-a Margaret. Alice eratão jovem, movia-se tão espontaneamente e com tanta confiança. — Tu ésexactamente como eu. Como eu era. Forte como um cavalo.— E menos espantadiça. — Alice sorria. — Que um cavalo, claro.Margaret sentia-se cansada. Desejava <strong>de</strong>itar-se e fechar os olhos, e pensarno que tinha feito e no que Alice iria fazer.Alice percebeu isso e levantou-se, fingindo olhar para o relógio. —Amanhã, volto cá.— Faz isso. Há muitas coisas que tens <strong>de</strong> saber.Despediram-se com um beijo.— Estou contente, mãe. Estou contente por ir.— Ainda bem — afirmou Margaret. Ao mesmo tempo pensava, possoser velha, mas não sou pateta. Eu sei o que é preciso para nos sentirmos lábem e tu tens isso, minha Alice. És mais parecida comigo, que aquilo quequeres admitir.Tinham-se seguido três semanas a um ritmo febril. Alice conseguiutratar dos assuntos necessários, mas estes absorveram todo o seu tempo.Consultou o dr. Davey, que era o médico da família <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ela nascera.— Nunca tiveste doente na tua vida, nem um só dia, minha querida.Não preciso <strong>de</strong> te mandar fazer um rol <strong>de</strong> exames caros para saber que teencontras em perfeita saú<strong>de</strong>.Em seguida, foi colocando um visto numa longa lista <strong>de</strong> perguntas,escrevinhou umas linhas no fim e assinou o atestado médico. Alice assinoupor baixo e enviou-o a Beverley Winston.Deslocou-se ao seu <strong>de</strong>ntista e este fez-lhe um exame a todas as obturações.Foi a Londres para levantar o seu equipamento polar <strong>de</strong> um armazém<strong>de</strong> Sullavan, junto à Via Circular do Norte. Este foi-lhe entregue por umhomem com uma forte constipação, que lhe disse ter passado seis estações<strong>de</strong> Inverno no gelo. Deparou com uma pilha surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> abafos feitosem lã e tecido impermeável polar, <strong>de</strong>stinados ao interior e ao exterior, todosi<strong>de</strong>ntificados com a ban<strong>de</strong>ira da UE e o logótipo da Sullavanco, tal comoRichard lhe <strong>de</strong>screvera. O anoraque vermelho <strong>de</strong> protecção máxima tinhaum aspecto maciço, ostentando nas costas um gran<strong>de</strong> rectângulo com osdizeres “1ª Expedição à Antárctica da UE”. À frente havia uma fita a<strong>de</strong>renteem velcro que dizia simplesmente “Peel”. Recebeu um par <strong>de</strong> botas com89
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A blusa da rapariga ergueu-se um po
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do com a sua experiência, a arte e
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pequena mesa rústica, e ainda uma
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tiu que a filha a conduzisse suavem
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são. — Tratava-se sempre da tele
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disposição as infra-estruturas de
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posta, nem teses sem provas. Gostav
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