cama e construído uma casa e uma vida juntos, e mesmo assim ela po<strong>de</strong>riater sido uma estranha, ou Georgia ou a mulher do pub. Aquela sensação<strong>de</strong>u-lhe vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar, mas também não podia dar largas a esse impulso.Olhou para ele, <strong>de</strong> ar inflexível e com os olhos secos.— Estou a ver — disse ele, finalmente.Pelo menos, a partir <strong>de</strong>ssa altura, <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> argumentar com ela. Eem dois dias arrumara as suas coisas e abandonara a casa. Deixou-lhe umamensagem na mesa da cozinha, presa num canto pelo bule ainda meiocheio <strong>de</strong> chá frio. Na mensagem dizia que a amava, ainda que tivesse umaforma estranha <strong>de</strong> o <strong>de</strong>monstrar e que, pelo seu lado, não encarava aquilocomo o fim da relação entre os dois. Alice fez uma bola com a folha <strong>de</strong> papele lançou-a para o bal<strong>de</strong> <strong>de</strong> lixo da cozinha.— Sim, é só isso — respon<strong>de</strong>u a Becky.— Lamento, minha querida. Acho que ele te fez feliz. Foste feliz durantetodo esse ano. Rias-te constantemente e não encaravas as tuas responsabilida<strong>de</strong>scom o ar sério com que o costumas fazer. Pete fez-te umpoucochinho mais frívola.— Eu sei disso.Tinham encomendado os pratos e estes estavam agora à sua frente.Sentindo uma fome <strong>de</strong>voradora, Alice pedira atum no forno com sementes<strong>de</strong> sésamo e macarrão. Reparava, nesse momento, que havia sementes <strong>de</strong>sésamo na sua roupa e que estas lhe pareciam pequenos miriápo<strong>de</strong>s. Estavaconvencida <strong>de</strong> que se os visse ainda mais <strong>de</strong> perto, iria conseguir distinguiros filamentos das pernas. Cortou muito resolutamente um pedaço do peixe,enrolou-o nos fios da massa e colocou-o na boca. A comida tinha um gostoestranho a metal.— Alice, tens a certeza <strong>de</strong> que estás bem?— Sim, claro que estou. — Sorriu para Becky. — Aprendi a ser frívola.Já consegui ultrapassar a situação. Não preciso <strong>de</strong> Pete e das suas velharias.Estou prestes a largar tudo, na perspectiva <strong>de</strong> ir vaguear uns meses para aAntárctida, não é?— Para mim, não me parece que isso tenha a ver com <strong>de</strong>scontracção eimpulsivida<strong>de</strong>. Soa-me a algo penoso e bastante perigoso— Mas vou ter a hipótese <strong>de</strong> estudar rochas sedimentárias com 400milhões <strong>de</strong> existência, que até agora quase ninguém viu. Vou andar vestidacom um fato <strong>de</strong> explorador masculino, apren<strong>de</strong>r a conduzir uma moto <strong>de</strong>neve, a conseguir salvar-me sozinha <strong>de</strong> uma fissura e, quando os dias correremrealmente bem, irei <strong>de</strong>dicar-me à limpeza da cozinha da base. Foi o dr.Shoesmith quem mo prometeu. — A sua boa disposição era, pelo menos,convincente para si própria.86
— Oh, Deus — exclamou Becky, com um sorriso amarelo.Através da abertura das sandálias Christian Loubotin, viam-se-lhe distintamenteas unhas dos pés. Estavam pintadas com um rosa pérola, suave eluminoso, e cada unha tinha sido <strong>de</strong>licadamente rematada com um círculobranco. As pernas eram macias e bronzeadas e as unhas das mãos tambémtinham passado pela manicura. Nas orelhas viam-se pequenos brincos <strong>de</strong>diamantes e tudo nela dizia perfeito. Olharam uma para a outra e <strong>de</strong>satarama rir.Alice apercebeu-se <strong>de</strong> que já terminara a bebida e que bebera a maiorparte do gelo já <strong>de</strong>rretido.— Pedimos mais duas?— Infelizmente tenho <strong>de</strong> trabalhar esta tar<strong>de</strong>. Mas não quero saber.Vou beber uma taça <strong>de</strong> vinho — <strong>de</strong>cidiu Becky. — Tu vais regressar <strong>de</strong> lá asalvo, não vais?— Vou — prometeu Alice.Ninguém voltava igual ao que fora, recordou-se.— Como vai a Jo? — perguntou Becky.Beberam o vinho e Becky terminou o seu prato. Falaram sobre Jo e osbebés, e sobre se Vijay seria exactamente, ou apenas satisfatoriamente, o homemque Becky procurava. Nada daquilo diferia das dúzias <strong>de</strong> almoços queela e Becky tinham compartilhado ao longo daquele ano, mas Alice sentia--se ligeiramente longe dali. Nos seus ouvidos havia uma voz, um turbilhão<strong>de</strong> sílabas. Antárctida.Da sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> espaldar alto, ao lado da cama, Margaret avistouAlice a caminhar pela enfermaria, na sua direcção. Não queria que a filha<strong>de</strong>scobrisse como estivera ansiosamente à sua espera, pelo que se permitiuapenas um olhar rápido, antes <strong>de</strong> dobrar compenetradamente o jornalsobre o colo. Mas num só segundo conseguira ver que ela estava mais coradae tinha o rosto aberto como uma flor ao sol. As novida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>viam serboas.Um fluxo <strong>de</strong> memórias tomou conta <strong>de</strong> si e aliviou-lhe a visão da enfermariaabafada. Tinham passado quase quarenta anos exactos em que sesentira tal como Alice estava agora: prestes a iniciar os principais anos dasua vida, com a vasta imensidão da Antárctida à sua espera. Mesmo nessemomento, em que as dores lhe dominavam as articulações, conseguia recordar-seda sensação <strong>de</strong> estar <strong>de</strong>itada numa tenda com o vento a assobiar<strong>de</strong> encontro à lona, ou <strong>de</strong> olhar extasiada para a garganta azul e voraz <strong>de</strong>uma fissura, com a ponte <strong>de</strong> neve a ameaçar <strong>de</strong>smoronar-se sob o sol dofim da estação. A Antárctida era um local penoso e perfeito. Havia um saboráspero a inveja na boca <strong>de</strong> Margaret, e esta frisou para si própria que era87
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alcance do outro. A seguir enfrento
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cópteros e das aeronaves a levanta
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são. — Tratava-se sempre da tele
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