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www.nead.unama.br<br />
que te corresse do rosto não seria este suor úmido e orgíaco, que agora te enregela.<br />
Antes fosses bem pobre! Compreenderias talvez a necessidade de cultivar a tua<br />
inteligência, que esperdiças, como esperdiças o teu dinheiro... Amaldiçoada fortuna,<br />
que a ambos nos desgraçou!<br />
E Gaspar, enxugando as lágrimas, principiou a mudar a roupa do enteado,<br />
com a solicitude de uma mãe extremosa. Descalçou-o, e procurou chamar-lhe o<br />
sangue a sola dos pés; arrumou-lhe na testa um lenço borrifado com algumas gotas<br />
de amoníaco, e, depois de agasalhá-lo bem, fechou a porta do quarto, passou ao<br />
escritório e assentou-se à sua mesa de trabalho com um livro defronte de si.<br />
Gabriel, ao abrir os olhos no dia seguinte, o primeiro pensamento que<br />
formulou foi todo para Ambrosina. Os acontecimentos da véspera apareciam-lhe<br />
agora no espírito como reminiscências de fatos revistos através das camadas<br />
nebulosas do tempo.<br />
Muitos lhe tinham fugido inteiramente da memória, de envolta com os<br />
vapores da embriaguez; outros permaneciam no momento de acordarmos. A sinistra<br />
figura de Leonardo desenhava-se de um modo fantástico; aquele espectro hirsuto e<br />
desvairado, lançando em torno de si olhares de fera e empunhando uma faca,<br />
parecia um produto de pesadelo. E Gabriel, com a imaginação, via Ambrosina<br />
crivada de feridas, a debater-se e a pedir socorro nas garras do louco, que a<br />
arrastava pelos cabelos e começava a devorar-lhe o corpo a dentadas, como havia<br />
tentado na horrível noite do casamento.<br />
Gabriel, sacudido por essas idéias, sentia as fontes estalarem de febre.<br />
Mas, entre todas as duvidosas reminiscências da véspera, se destacava um<br />
fato, gravado a fogo, era a cena do caramanchão. Esse não tinha sombras<br />
esfumadas, nem contornos duvidosos; estava ali, nu e cru, em toda a brutal nitidez<br />
da realidade.<br />
Não havia para onde fugir! Era uma afronta verdadeira e positiva, que<br />
reclamava dos brios de Gabriel decisão pronta e enérgica.<br />
Com que tristeza, com que dor, com que sacrifício d’alma, não teve o<br />
desgraçado de chegar a esta conclusão inevitável: — Abandonar por uma vez<br />
Ambrosina?!... empurrar com o pé tudo o que ele até aí mais amara, mais<br />
loucamente estremecera! fugir daquilo que lhe enchera os sonhos de esperanças,<br />
destruir o castelo das suas ilusões, amaldiçoar o seu ídolo e calcar o próprio coração<br />
debaixo dos pés, como quem esmaga um imundo verme! Mas assim era preciso!<br />
Era inevitável! O que poderia ele esperar daquela mulher, no caso que lhe faltasse<br />
coragem para repeli-la? Não lhe teria já porventura consagrado toda a sua<br />
existência? não havia feito, por amor de semelhante ingrata, todos os sacrifícios de<br />
sentimento e de caráter, que se podem exigir de um homem? E qual fora a paga de<br />
tudo isso? — Uma vileza, uma infâmia, a mais torpe das traições — a traição do<br />
amor!<br />
Oh! Era indispensável fugir-lhe para sempre! nunca mais a ver! nunca mais a<br />
amar!<br />
E, com esta resolução, todo o seu ser se abalava num calafrio de morte.<br />
Mas que diabólica fascinação exerce sobre mim aquela mulher, considerava<br />
o mísero; para que eu, mesmo no auge de meu desespero e do meu ódio, sinta por<br />
ela todo o arrebatamento do amor e toda a humilhante agonia do desejo? Que<br />
sobrenatural poder me obriga a querê-la sempre, mesmo com a consciência<br />
dolorosa da sua infâmia e com a convicção degradante da minha covardia? Inferno!<br />
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