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sentiu-se empenhada na sorte dramática daquela mísera e formosa heroína de uns<br />
amores tão desgraçados.<br />
Não se fartava de contemplá-la.<br />
Ambrosina tinha febre. Haviam-na obrigado a mudar de roupa, friccionaramlhe<br />
o corpo com aguardente envolveram-lhe os pés feridos em panos velhos de<br />
linho. E ela, de olhos fechados, com a respiração alterada, gemia de leve, no<br />
entorpecimento do seu estado.<br />
A cama era larga, de casados; uma velha cama de madeira escura, alta do<br />
chão uns quatro palmos, e com imensa cabeceira guarnecida de maçanetas. A<br />
pálida enferma, meio envolvida nos lençóis, tinha uma postura dolente, a cabeça<br />
afogada na sombra macia dos cabelos, o colo oprimido e a garganta cheia de<br />
suspiros. Estava derreada sobre o lado do coração, o braço direito caía-lhe<br />
negligentemente ao comprido do corpo, e o outro se estendia para fora da cama,<br />
com a mão aberta na posição de pedir esmola.<br />
Laura contemplava tudo isso, como se tivesse defronte dos olhos uma bela<br />
obra de arte Via atentamente a cor e a forma, parava, embevecida, a considerar os<br />
pequeninos detalhes, e teria ímpeto de reproduzir, na tela ou no barro, aquele<br />
modelo, se na sua pobre educação houvesse entrado a pintura ou a estatuária.<br />
Depois de longo contemplar, não resistiu ao desejo de corrigir: Puxou mais<br />
para o ombro a cabeleira de Ambrosina, chamou-lhe o braço direito para o colo,<br />
endireitou as dobras da camisa e dos lençóis; e então afastou-se um pouco e miroua,<br />
cada vez mais embevecida, com os olhos apertados e a cabeça vergada, como<br />
uma artista que se revê na sua obra. Não se podia furtar à poética impressão que<br />
lhe causava a amante de Gabriel. Seu pai já lhe havia falado nela, mas da vida de<br />
Ambrosina, Laura só conhecia as exterioridades, que todavia nenhum valor teriam a<br />
seus olhos sem o concurso da paixão de Gabriel, que lhes dava um forte gosto de<br />
romance, ligeiramente apimentado pelo trágico elemento da sanha do marido louco.<br />
Ambrosina havia se imposto ao seu espírito e ao seu coração pelos mesmos<br />
processos que Bonaparte, com a diferença, porém, de que este tanto mais avultava<br />
quanto mais longe se perdia nas sombras do desconhecido, ao passo que a outra<br />
crescia agora de súbito com a sua aproximação.<br />
Quantas vezes, depois de enervante leitura de algum livro sobre o<br />
legendário aventureiro, não ficava a pobre sonhadora tomada na sua obscuridade<br />
por um sentimento desconhecido e indefinível que a arrebatava para o mundo<br />
fantástico das glórias?... Nessas ocasiões, aproveitando o cair do sol, ia ela<br />
assentar-se à beira do mar, defronte da casa, com o livro esquecido entre os dedos.<br />
Aí permanecia horas mortas, a olhar abstratamente para o segredo<br />
murmuroso das águas, alheia inteiramente a tudo que a cercava, e presa de um<br />
sofrimento ao mesmo tempo amargo e doce, que a fazia chorar.<br />
Qual era a dor que se apoderava da mísera criança? Ela mesma não o sabia<br />
dizer. Sentia que o coração lhe soluçava, sentia que de dentro lhe partiam reclamos<br />
e aspirações desejava e queria, mas não podia dizer o quê! Em sua imaginação<br />
havia-se formado um mundo de quimeras, com uma existência de dores e prazeres<br />
ideais, mas tudo vaporoso, fugitivo, confuso como um sonho.<br />
E Napoleão representava sempre o principal herói dos seus enlevos.<br />
Variavam as circunstâncias, variava o cenário, mas o vulto misterioso do Cativo de<br />
Santa Helena estava, embrulhado no seu capote de batalha, o ar profundamente<br />
frio, o gesto pavoroso, o olhar cheio de predestinações.<br />
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