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A Condessa Vésper - Unama

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CAPÍTULO XXXV<br />

O BOÊMIO<br />

www.nead.unama.br<br />

Gustavo, o sobrinho de Gaspar a este confiado por Paulo Mostella, vinha a<br />

ser o resultado daquela adiantada gravidez em que se achava Virgínia, quando a<br />

vimos em Pernambuco, nos últimos tempestuosos dias da árdega existência de<br />

Violante; o que quer dizer que vinte anos são decorridos depois disso, e que o<br />

Médico Misterioso está agora por conseguinte orçado pelos cinqüenta, e Gabriel<br />

com a metade dessa idade.<br />

Gustavo era um belo moço no seu tipo nortista. Altura regular, boa saúde,<br />

olhos inteligentes, palavra fácil e riso pronto. Tinha o gênio arrebatado, mas o<br />

coração generoso e meigo, caráter desregradamente altivo e chapeado de fortes<br />

aspirações morais.<br />

Chegara ao Rio de Janeiro com todas as doidas e perfumadas ilusões dos<br />

seus vinte anos, cavalgando, descalço e sem esporas, uma nuvem de sonhos e de<br />

esperanças.<br />

Fora morar com o tio, mas logo ao fim de poucas semanas declarou<br />

abertamente que não podia continuar a viver do pão alheio e preferia aventurar-se lá<br />

fora, por sua conta, na luta pela existência. Embalde empregou o Médico Misterioso<br />

todos os meios para dissuadir de semelhante loucura, e embalde Gabriel juntou<br />

suas razões às do padrasto: "Gustavo nessa época apenas ganhava quarenta milréis<br />

mensais, como noticiarista de um periódico de vida não menos incerta que o<br />

referido ordenado, e, com magros recursos, iria sem dúvida sofrer por aí torturantes<br />

e ridículas necessidades!" Foi, porém, tudo inútil, e o sonhador mudou-se, com a sua<br />

nuvem cor-de-rosa, para a companhia de dois estudantes de medicina, igualmente<br />

pobres e não menos gineteadores de ideal.<br />

Principiou então para ele a verdadeira vida de boêmia. Quanta privação e<br />

quanto vexame! mas também quanta dourada fantasia! quanto aroma de mocidade<br />

em flor, e quanta delicadeza de sentimentos!<br />

Com três forasteiras andorinhas se encontraram à beira de um telhado antes<br />

de formar o seu verão, encontraram-se os três boêmios um belo dia por acaso à<br />

mesa de um café da rua do Ouvidor, e conversaram, e riram, leram e fumaram de<br />

camaradagem os seus versos sem conta e os seus cigarros bem contados, fingiram<br />

juntos depois um jantar de quatrocentos réis por cabeça, e ficaram bons amigos. Já<br />

nessa mesma noite dormiram os três no mesmo quarto, e desde então formaram a<br />

sua república, onde muitas vezes durante o dia inteiro faltava o que comer, o que<br />

fumar e o que beber, mas onde nunca faltou do que rir, com o que sonhar e a quem<br />

amar.<br />

Uma tarde, entretanto, Gustavo ficara em casa. Era o dia de seus anos, e<br />

nesse dia justamente o sonhador não havia jantado, nem almoçado, e a fome lhe<br />

fazia o tempo mais frio e as horas mais longas.<br />

O sol escondera-se. Gustavo fechou o livro que lia e foi pôr-se à janela, a<br />

olhar vagamente para o espaço. Havia no ar uma dura melancolia, que se levantava<br />

para o céu com as pardacentas névoas exaladas da terra; a natureza, repousada e<br />

farta, bocejava a sua indiferença; a cidade, quieta e morna, parecia entorpecida na<br />

egoística placidez de uma digestão feliz.<br />

A república era num segundo andar, nos fundos da rua Santa Teresa, e aos<br />

ouvidos do boêmio chegava o eco da música dos alemães tocando no Passeio<br />

Público.<br />

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