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— Mas é que não devemos abusar, respondeu Gaspar, um pouco<br />
contrariado. O sacrifício tem limites! Ora essa!<br />
— Que sacrifício?.<br />
— Que sacrifício?! pergunta-me a senhora. Acaso merecerá outro nome o<br />
que faço, desde que a acompanho embrulhado no incômodo disfarce de seu<br />
marido!... Poderá a senhora calcular o que é viver com uma mulher encantadora, ver<br />
nos outros o ar de inveja causado por uma felicidade que não existe, afetar os<br />
confortos do amor satisfeito e completo, e não obstante, sofrer o mais cruel<br />
isolamento que se pode impor a um homem da minha idade!... Confesso-lhe, minha<br />
senhora, que se há alguma virtude no meu procedimento, ela me tem custado<br />
enormes sacrifícios!<br />
Violante ouviu-o com certo ar de satisfação.<br />
— Vamos! disse ela afinal, repreendendo-o. Seja bom para mim, como foi<br />
seu pai. Lembra-se de que um miserável abusou da minha fraqueza e zombou da<br />
minha boa-fé. Sou uma pobre mulher que deseja ter dignidade, e o senhor, se<br />
possui alguma cousa do caráter daquele a quem devo a vida, não se negará<br />
certamente a ajudar-me. Por quem é! já agora conclua a delicada tarefa, a que, com<br />
tanto cavalheirismo, se dedicou.<br />
Gaspar aproximou-se dela, com estas palavras:<br />
— Minha amiga, vou falar-lhe com toda a franqueza.<br />
— Está dito! respondeu Violante; proponho até que passemos a noite a<br />
conversar. É um excelente meio de ficarmos recolhidos, sem nos ser necessário<br />
recolher à cama.<br />
E fecharam-se no mesmo quarto.<br />
Era uma sala vasta, confortável, cheia de trastes. Gaspar traçou no chão<br />
uma linha com o pé, e disse rindo:<br />
— Esta linha separa-nos. Cada um tem de contentar-se com o espaço que<br />
lhe toca, e não pode meter o pé no terreno alheio; todavia, se a senhora quiser estar<br />
mais à vontade, é meter-se na cama, fechar os cortinados, e ficará completamente<br />
abrigada contra qualquer olhar meu, involuntariamente indiscreto...<br />
— E o senhor, nesse caso, como tenciona acomodar-se?<br />
— Ah! Eu me arranjarei nesta poltrona. Não lhe dê isso lástima, porque já<br />
estou habituado a tais situações. Só peço licença para, depois que a senhora já<br />
esteja recolhida, tirar a sobrecasaca e os sapatos.<br />
— Concordo. Mas por enquanto conversemos. Eu servirei o chá. E Violante<br />
colocou a mesinha do chá entre duas cadeiras, e passou uma chávena ao<br />
companheiro. — O senhor declarou que me queria falar com franqueza... a ocasião<br />
não pode ser melhor. Podemos conversar à larga.<br />
— Porque a senhora faz de mim um juízo que eu não mereço; supõe-me o<br />
mais leal dos homens, e eu não passo de um grande velhaco.<br />
— Está gracejando!<br />
— Afianço-lhe que não, infelizmente. E para meu castigo, vou dizer-lhe tudo:<br />
A primeira impressão que recebi em sua presença, foi muito diversa da que a<br />
senhora se persuade. Calculei ter defronte dos olhos uma mulher escandalosa,<br />
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