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o seu espírito moderno, frio e observador, tendia fatalmente a reagir contra nossa<br />
abstração idealista, que nos levava à contemplação e ao êxtase. O moço pobre,<br />
trabalhador e independente, não podia suportar a nossa tristeza e a nossa<br />
concentração. Para ele somos simplesmente ridículos mas a verdade é que somos,<br />
nós dois, por processos diversos, igualmente atrasados; eu, porque me deixei<br />
estacionar, e tu, por um simples fenômeno de educação e de hereditariedade.<br />
Gabriel atirado indolentemente na sua poltrona, ouvia as palavras do<br />
padrasto, quase sem as compreender. Era a primeira vez que lhe arrastavam o<br />
espírito a semelhantes considerações; nunca até aí cogitara dos elementos que<br />
determinaram a sua farta existência, e nunca se lembrara de prestar contas dos<br />
seus raciocínios. Havia aceitado a vida, sem indagar donde ela vinha, nem para<br />
onde se encaminhava. Um dia deu por si no mundo, reparou que era rico e bem<br />
parecido; tinha dinheiro e saúde... Era gozar! Que lhe importava o resto? A fortuna<br />
chegara-lhe às mãos como uma carta anônima, e ele nem sequer agradecia, porque<br />
não tinha a quem dirigir os seus agradecimentos. As circunstâncias do meio, da<br />
educação e da hereditariedade fizeram-no pueril e romântico, e ele de braços<br />
cruzados aceitou essa imposição, como quem aceita uma fatalidade orgânica. Não<br />
reagiu contra ela, como não reagiria contra o seu sexo, se nascesse mulher.<br />
Eis, porém, que agora Gaspar, para o obrigar a ver claro, lhe torcia o olhar<br />
para a frente.<br />
— Mudaram-se os tempos! disse o velho, depois de mais algumas<br />
considerações. Já não se trata de querer ou não querer acompanhar o movimento<br />
da sua época; trata-se de seguir a onda evolutiva ou ficar esmagado pelos que vêm<br />
atrás! Eu, por mim, estou velho e com os pés inclinados para a cova, pouco se me<br />
dá a onda me passe por cima; tu, porém, és moco e tens um grande campo aberto<br />
defronte dos olhos. É preciso que avances corajosamente, e eu não quero morrer<br />
sem te ver a caminho!<br />
— Mas, nesse caso, o que me compete fazer?<br />
— Trabalhar! Estou farto de dizer-te! É necessário que escolhas qualquer<br />
profissão, que te dediques a qualquer idéia! Daí é que te virá o ingresso na vida e<br />
entre os homens; daí se formarão as proporções da tua individualidade pública.<br />
Serás grande, se o teu trabalho for grande; serás menor, se o teu trabalho for<br />
pequeno. E se tiveres talento, abnegação e coragem, se viveres um pouco da alma<br />
dos outros, serás mais do que tudo isso, serás amado, não por um amigo ou por<br />
uma mulher, mas por um povo ou por uma geração!<br />
Gabriel concentrou-se para meditar o que acabava de ouvir.<br />
— Tens um exemplo no próprio Gustavo. Viste o modo sobranceiro pelo qual<br />
procedeu ele conosco; entretanto, é nosso parente e nada mais possuía além da<br />
boa vontade de trabalhar.<br />
— Um pobre diabo!<br />
— Foi! será talvez ainda hoje, mas cada dia que passa é um degrau que ele<br />
sobe! Sem instrução, sem dinheiro, sem protetores, conseguiu todavia não se deixar<br />
morrer. Já é muito! E não se deixar corromper; o que é tudo! Ah! tu não podes fazer<br />
idéia do que é a existência, aos vinte anos, quando a temos de extrair de nós<br />
mesmos; nunca viveste nesse inferno, mas em compensação, nunca desfrutarás o<br />
paraíso que se alcança depois de atravessá-lo. E sabes por que razão Gustavo<br />
resistiu e venceu com tanta coragem às suas dificuldades? É porque tem um ideal.<br />
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