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A Condessa Vésper - Unama

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CAPÍTULO XXXIX<br />

A VEZ DA CIGARRA<br />

www.nead.unama.br<br />

No terraço do Alcazar corria a pândega desenfreada. Representava-se La<br />

folie parfumeuse, e as notas candenciosas da alegre partitura misturavam-se no<br />

pesado ambiente do teatro com frêmito das gargalhadas, o fumo dos charutos e o<br />

vapor inebriante dos vinhos.<br />

Em torno das mesinhas de mármore, homens e mulheres, aos magotes,<br />

vozeavam, numa estrepitosa concussão de línguas, em que a francesa era a mais<br />

atropelada. Fervia o champanha por toda a parte, e por todos os grupos faiscavam<br />

diamantes e jóias de alto preço. Havia toilettes das loureiras, um luxo de espetáculo<br />

d'ópera, e as carruagens, estacionadas na rua à espera delas, formavam serpentes<br />

que abrangiam quarteirões.<br />

Sob a pobre e melancólica folhagem de bambus de que constava o<br />

jardinzinho do famoso café-concerto e que atormentada pela luz mordente do gás,<br />

parecia minguar de nostalgia, saudosa da frescura dos seus campos, rolava todas<br />

as noites, na mesma onda, a inconsciente e barulhosa prodigalidade dos herdeiros<br />

ricos e a torturante pantominice dos fingidos argentários. Viam-se os elegantes de<br />

chapéu de feltro claro e luvas de cor, empunhando inquietadores bengalórios<br />

encabeçados de ouro; viam-se rutilantes e agaloadas fardas da Marinha e do<br />

Exército, em contraste com as joviais casacas negras dos cançonetistas parisienses,<br />

que vinham cá fora, nos intervalos dos atos, escorripichar, a barba longa e de<br />

camaradagem com o público, o seu gelado grogue à la américaine. Destacavam-se<br />

os sangüíneos e atochados tipos dos ricos fazendeiros do interior da província ou do<br />

fundo de Minas e São Paulo, sequiosos por atirar às goelas da pândega fluminense<br />

um bom punhado de contos de réis da sua última safra de café; alguns desses, mal<br />

chegados essa mesma noite, ainda conservavam as suas botas da viagem e o seu<br />

poncho à moda do Sul.<br />

Dentre o cheiro das perfumarias e dos pós de toucador, tresandava uma sutil<br />

e femeal recendência pituitária, que punha nas ventas masculinas irracionais<br />

palpitações de faro.<br />

Era ali, naquele teatrinho da estreita rua da Vala, entalado entre casas de<br />

comércio a retalho, que todas as noites a gente folgazã da Corte, e os mais que dela<br />

dependiam, iam buscar de ponto em branco o seu quinhão de gozo para os sentidos<br />

esfalfados; mas era lá também que muito desgraçado ia pedir ao ruído do alheio<br />

prazer o esquecimento das próprias agonias, de surdas e inconfessáveis dores, ou<br />

ia cavar, com um sorriso mais triste que o esgar de um enforcado, os dois mil-réis<br />

para as primeiras compras da casa no dia seguinte. Á sombra daqueles<br />

amarelecidos bambus, se encontravam os infelizes de toda a espécie, os infelizes<br />

que choram para fora, e os infelizes que choram para dentro; ao lado do vagabundo<br />

lamuriento e pedinchão, lá estava, em boa aparência, o mísero chefe de família<br />

desonrado pelo luxo da mulher e das filhas, o falido e risonho financeiro, vivendo, a<br />

cliquot e havana, à custa das regalias do seu débito à Praça; lá estava o político<br />

vendido e garboso da sua venalidade, e artista sem ânimo, e jornalistas dispépticos,<br />

e cômicos noctívagos, e jogadores profissionais, e lindos mancebos de lábios<br />

alugados ao amor das dissolutas.<br />

E desse elemento vário se compunha a enorme roda, que nessa noite<br />

cercava ruidosamente no Alcazar a formosa <strong>Condessa</strong> <strong>Vésper</strong>.<br />

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