Guia Politicamente Incorreto Da - Leandro Narloch
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Com a intenção de realçar os traços latinos do seu libertador querido, o presidente venezuelano Hugo Chávez, no<br />
programa dominical Aló Presidente, em 5 de março de 2006 disse: “Bolívar não era branco. Bolívar nasceu entre os<br />
negros, era mais negro do que branco. Não tinha olhos verdes. Bolívar era zambo”. 156<br />
O preconceito contra outros grupos sociais era comum. Sua família era parte da elite<br />
branca espanhola, de origem basca. Era um “mantuano”, como eram chamados os donos<br />
de terras e de escravos e comandantes do exército colonial 157 que descendiam dos<br />
espanhóis. O pai, que morreu de tuberculose quando ele tinha dois anos, possuía duas<br />
fazendas de cacau, uma de cana-de-açúcar na cidade de San Mateo, três ranchos de gado<br />
nas planícies, uma plantação de índigo, uma mina de cobre e quatro casas em Caracas e<br />
outras em La Guaira. A consciência de raça era bem enraizada em toda a região, e as<br />
conversas de vizinhos normalmente eram sobre a ascendência dos demais. 158<br />
O temor de Bolívar tinha fundamento de acordo com o pensamento da época. Na<br />
Venezuela, de economia agrícola, escravos e pardos constituíam 61% da população, ou<br />
seja, a maioria. 159 Por decisão dos espanhóis, foi permitido a eles que integrassem as<br />
milícias, decisão que foi reprovada pela aristocracia local, temerosa de rebeliões. 160 Não<br />
era uma época tranquila para as aristocracias. Na Europa, os princípios liberais da<br />
Revolução Francesa tinham acabado em guilhotina e tragédia. No Haiti, então a colônia<br />
francesa mais próspera no Caribe, uma revolta de escravos matou senhores brancos e<br />
tomou propriedades em 1791. A partir de então, boa parte dos agricultores e dos donos<br />
de terras deixaram o país, que mergulhou em conflitos raciais de brancos ricos, brancos<br />
pobres, mulatos, negros livres e escravos, além da invasão de franceses, ingleses e<br />
espanhóis. Depois de anos seguidos de devastação e carnificinas, a República do Haiti,<br />
proclamada em 1804, matou ou expulsou todos os brancos que viviam por ali e manteve<br />
os negros em um sistema que dissimulava a escravidão (veja mais sobre o Haiti na<br />
página 157).<br />
Quando Napoleão invadiu a Espanha, em 1807, as colônias latino-americanas ficaram<br />
subitamente sem uma metrópole para obedecer. Mais do que isso, a aristocracia criolla<br />
percebeu que não poderia contar com ela para sua proteção. No vácuo de poder,<br />
esperava-se que uma revolução acontecesse de um jeito ou de outro. “Os hispanoamericanos<br />
tiveram de preencher o vazio político e conquistar sua independência, não<br />
para criar um outro Haiti, mas para impedi-lo”, escreveu o historiador John Lynch. 161<br />
Não é por acaso que em toda a América Latina, os mesmos militares e aristocratas que<br />
tinham lutado contra a Espanha passam a atuar para conter insatisfações sociais e<br />
pequenas rebeliões internas. “Após um envolvimento inicial numa agitação puramente<br />
fiscal, os criollos geralmente percebiam o perigo de um protesto mais violento das<br />
camadas inferiores, dirigido não somente contra a autoridade administrativa mas também<br />
contra todos os opressores”, afirma o historiador Leslie Bethell. “Então se uniam às<br />
forças da lei e da ordem para reprimir os rebeldes sociais.” 162<br />
De qualquer modo, a aula de Marx foi incompleta. Bolívar tinha medo das classes<br />
sociais abaixo dele e agiu para evitar que elas chegassem ao poder. Não ter enxergado<br />
isso foi uma falta gravíssima de Marx, considerando-se que hoje seus discípulos de<br />
universidades públicas e privadas sempre começam qualquer análise social procurando,<br />
em qualquer lugar, em qualquer data, qualquer coisa relacionada a uma luta de classes.<br />
Na opinião de Simón Bolívar, que escreveu a constituição da Bolívia, essa sua obra-