Guia Politicamente Incorreto Da - Leandro Narloch
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OS REVOLUCIONÁRIOS REACIONÁRIOS<br />
Uma das primeiras histórias de viagem no tempo a conquistar multidões de leitores<br />
foi o conto O Ano 2440, escrito pelo francês Louis-Sébastien Mercier em 1771. Mesmo<br />
proibida pelas autoridades de Versalhes por causa de suas críticas à monarquia, a obra<br />
foi o maior best-seller da época. Teve em poucos meses 25 reimpressões, popularizando<br />
ideias que resultariam, 18 anos depois, na Revolução Francesa. Em O Ano 2440, o<br />
narrador conta que, logo depois de uma tensa discussão com um amigo sobre as injustiças<br />
de Paris, resolveu tirar uma soneca. Acorda com uma longa barba, o corpo fraco e<br />
envelhecido: tinha dormido por quase 700 anos. Um filósofo logo percebe sua situação e<br />
se dispõe a guiar o viajante no tempo pela Paris de 2440. 181<br />
O futuro que Mercier descreve é a sua imagem de um mundo quase perfeito. Paris tinha<br />
deixado de ser o lugar sujo e desorganizado de 1771 para dar lugar a ruas limpas,<br />
planejadas e cheias de árvores. Uma revolução havia limitado o poder do rei, que andava<br />
a pé pela cidade, assim como quase todos os habitantes – e as melhores carruagens eram<br />
reservadas aos idosos. A população vivia em igualdade quase total, vestindo o mesmo<br />
tipo de roupas e morando em casas do mesmo padrão. Não havia mendigos, prisões,<br />
criminosos, soldados, impostos, padres e, o principal: não existiam escravos. A<br />
escravidão tinha sido abolida séculos antes, depois de uma grande revolta dos negros.<br />
No centro de uma praça, o narrador se depara com a estátua de um célebre<br />
revolucionário negro que fez jorrar o sangue de seus tiranos e libertou o mundo daquele<br />
costume odioso. “Franceses, espanhóis, ingleses, holandeses e portugueses, todos se<br />
tornaram vítimas do ferro, do veneno e do fogo. O solo da América bebeu avidamente o<br />
sangue que esperava por tanto tempo.” 182<br />
Algumas previsões do escritor Mercier se tornaram realidade muito antes do que ele<br />
imaginou. Paris passaria no século 19 por uma transformação urbanística que resolveria<br />
o caos das vielas medievais e daria origem aos bulevares que hoje marcam a cidade. Em<br />
1789, os cidadãos enfrentariam o rei Luís XVI para logo depois invadir igrejas e<br />
massacrar religiosos. Dois anos depois, os escravos da mais importante colônia francesa<br />
na América, o Haiti, que naquela época se chamava São Domingos, deixaram as senzalas<br />
e invadiram a casa de seus senhores. Mataram franceses, violentaram suas mulheres e<br />
filhas, queimaram canaviais e plantações de café. Com ataques repentinos, destruíam<br />
moinhos e casas de engenho, capturavam prisioneiros e armavam grandes festas no que<br />
havia sido seu cativeiro. “Espantados com o próprio progresso e bêbados de prazer,<br />
gastavam preciosos momentos festejando suas vitórias, festas que acabavam no massacre<br />
de um grande número de prisioneiros desafortunados”, contou um naturalista francês<br />
chamado Michel Descourtilz, que testemunhou as revoltas. 183 Planejados por uma extensa<br />
rede de líderes escravos, os ataques aconteceram ao mesmo tempo em centenas de<br />
propriedades. Apavorados, muitos fazendeiros fugiram para Cuba ou para outras<br />
colônias francesas, como Martinica e Guadalupe. Ingleses e espanhóis tentaram se<br />
apoderar da colônia, mas, como previu o best-seller Mercier, também foram vítimas do<br />
ferro e do fogo dos rebeldes negros. A Revolução do Haiti foi a maior revolta escrava de