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Guia Politicamente Incorreto Da - Leandro Narloch

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François, desde o começo da revolta, tinha se mostrado defensor do rei espanhol e da<br />

Igreja e disposto a um acordo. Em maio de 1793, deu a si próprio o título de grandealmirante<br />

e levou cerca de 6 mil soldados para o lado espanhol. Em troca, ganhou terras,<br />

um salário de 250 dólares da Coroa espanhola e garantia de liberdade para sua família.<br />

Enquanto os soldados espanhóis guardavam a fronteira, as tropas de Jean-François e<br />

Biassou partiram para o ataque aos franceses. 192<br />

Se a situação de São Domingos era caótica, a metrópole ardia ainda mais. A França vivia nessa época o auge do<br />

período do terror da Revolução Francesa. Dezenas de execuções públicas aconteciam diariamente. Padres, nobres ou<br />

qualquer cidadão considerado inimigo político do povo foram para a guilhotina ou foram vítimas de execuções sumárias<br />

nas ruas. Foram quase 40 mil pessoas mortas – entre elas Antoine Lavoisier, o “pai da química”.<br />

No fim de 1793, a situação ficou mais esquisita. Os republicanos franceses<br />

declararam a liberdade dos escravos de São Domingos, na tentativa de atrair para o seu<br />

lado as tropas negras. No ano seguinte, a França aboliu a escravidão em todas as suas<br />

colônias. Foi uma decisão inédita em todo o mundo – mesmo a Inglaterra, que se tornaria<br />

o berço do abolicionismo, levaria décadas para tomar a mesma atitude. Se a luta do líder<br />

negro Jean-François era por liberdade, ele deveria rapidamente abrir uma negociação e<br />

passar para o lado francês, certo? Mas Jean-François ficou do lado espanhol. Pior: com<br />

o anúncio da França de abolir os escravos, diversos fazendeiros franceses pediram<br />

abrigo à Espanha, que começou a protegê-los. Armou-se assim uma cena inusitada. Os<br />

rebeldes negros do Haiti passaram a proteger alguns dos senhores de terras contra os<br />

quais se revoltaram dois anos antes. 193<br />

Até hoje os historiadores tentam explicar por que esses líderes rebeldes tomaram<br />

atitudes assim. A primeira hipótese é que eles enxergavam os republicanos franceses<br />

abolicionistas com desconfiança. Boa parte dos burgueses que apoiaram a Revolução<br />

Francesa eram mercadores das cidades portuárias da França, como Nantes e Bordeaux.<br />

Esses homens, que impuseram os valores de igualdade e liberdade na Europa,<br />

enriqueceram vendendo produtos feitos do outro lado do Atlântico por escravos – e não<br />

lhes passava pela cabeça acabar com esse sistema. Na França europeia eram<br />

revolucionários; na França caribenha, escravistas convictos.<br />

Além disso, anos antes da revolta de 1791 estourar, a corte francesa tentou impor aos<br />

senhores coloniais mais regras sobre como deveriam tratar seus escravos. O novo<br />

“Código Negro” determinava um limite de horas de trabalho por dia, folga em parte do<br />

sábado, melhorias nas roupas e na alimentação e o mais grave: estipulava que os<br />

escravos poderiam reclamar às autoridades reais se as medidas não fossem cumpridas.<br />

Os fazendeiros se negaram a obedecer a quase todas as novas regras. Notícias desse<br />

embate se espalharam pelas fazendas, criando assim uma aproximação entre o rei e as<br />

senzalas. “Os escravos identificam o progresso à majestade real e o abuso a esses<br />

brancos que formam assembleias, conselhos municipais e outras sociedades, visando a<br />

evitar que o monarca imponha suas decisões”, afirma o historiador francês Pierre<br />

Pluchon. 194<br />

Mesmo no Brasil, os escravos foram os que mais lamentaram a queda de dom Pedro II. Até o começo do século 20<br />

era possível ver, no Rio de Janeiro, negros com a coroa real tatuada nas costas.<br />

Não só Jean-François, mas diversos outros rebeldes negros se mostraram defensores<br />

das monarquias (veja o quadro ao lado). Isso aconteceu não só em São Domingos, mas<br />

em diversas regiões da América. Num estudo clássico, o historiador americano John

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