Indeterminação e Improvisação na Música Brasileira ... - CCRMA
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O interessante é a posição em que tal expressão excedente se coloca dentro da<br />
composição: a parte que excede é sempre a penúltima, assim como tempos depois teríamos<br />
um Farinelli fazendo piruetas sonoras com uma respiração exatamente no penúltimo momento<br />
de uma obra, em uma espécie de grande êxtase sonoro antes do fechamento. Isso está<br />
presente em toda idéia de cadência, seja vocal ou instrumental: um júbilo transbordante,<br />
inflexão em que o cantor ou o instrumentista desdobra sonoridades mais livremente, podendo<br />
acessar uma parcela de sua inventividade. Uma fermata é colocada como uma espécie de<br />
consentimento ao tempo mais livre a ser operado pelo performer, que demonstra seus dotes<br />
performáticos sem que fuja do enquadramento da programação, já que a obra, via de regra,<br />
termi<strong>na</strong> com uma afirmação fi<strong>na</strong>l que não é do solista. Uma espécie de feitiço sobre a platéia é<br />
almejado, uma intenção de impressio<strong>na</strong>r pela volúpia dos gestos; esse tipo de apelo perdura<br />
até os dias de hoje, criando uma forte afinidade e um elo emotivo entre o público e o solista.<br />
Em outro plano, é bem conhecida também a crítica de Adorno ao gesto wagneriano do regente<br />
que envolveria todo um desejo de agradar e cativar o público, como uma espécie de<br />
publicitário. Por outro lado, outros críticos do barroco apontavam tal momento com desdém e<br />
muita ironia. Tosi chegou a escrever que a orquestra bocejava neste momento, enquanto o<br />
cantor, ou melhor, a Garganta, era acio<strong>na</strong>da, como um “galo tempestuoso num redemoinho de<br />
vento” 52 .<br />
Mas, desde muito antes, o cantochão serviria também de eixo seguro sobre o qual<br />
certas qualidades improvisadas gravitariam, mais ou menos livres ou dependentes do canto<br />
estabelecido. Vários tratados indicam como improvisar linhas melódicas em contraponto<br />
sobreposto ao cantus firmus. Em 1412, Prosdocimus Beldemandis mencio<strong>na</strong> duas formas de<br />
contraponto: o escrito e o executado (improvisado). Havia então um contraponto que se<br />
alimentava da experimentação, e o que era escrito não daria conta da prática. Na Itália, quase<br />
um século e meio mais tarde, Vicente Lusitano expõe um procedimento metodológico para<br />
aprender a improvisar sobre um cantus firmus. Zarlino, em 1573, estabelece regras mais<br />
estritas para a improvisação, ao instruir o cantor com mecanismos sofisticados de execução de<br />
linhas de contraponto em cânone, com ou sem cantus firmus. Portanto, a evolução das<br />
práticas musicais se dava cada vez mais em função da escrita.