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<strong>Anais</strong> do <strong>VII</strong> <strong>SIC</strong> 1205<br />
mística muito grande. Inclusive, o personagem cita que onde morava na infância dizia-se que não<br />
devia olhar no espelho “às horas mortas da noite, estando sozinho” (ROSA, 1963, p. 62); e que para<br />
os antigos, o reflexo do espelho representava a alma. Mello (2000, p. 116) confirma esse<br />
pensamento quando diz que “desde a Antiguidade, os espelhos fazem parte dos instrumentos<br />
divinatórios, participando de todas as espécies de rituais ligados à magia”.<br />
Para encontrar seu eu genuíno, o personagem decide olhar-se através de sua figura<br />
externa. Para isso, ele devia submeter-se a “um bloqueio „visual‟ ou anulamento perceptivo”<br />
(ROSA, 1963, p. 64) de diversos componentes de seu rosto externo, eliminando traços de<br />
personalidade como sua imagem animal, posto que ele acredita que cada um de nós traz em si traços<br />
animais, os elementos hereditários e os “traços” adquiridos através de relações com outras pessoas,<br />
como paixões, influência e interesses. O personagem, então, passa a ver-se refletindo uma imagem<br />
deturpada, escurecida.<br />
Com isso, dores de cabeça começam a atormentá-lo, o que o leva a abandonar a<br />
experiência da contemplação de si temporariamente. Depois de meses sem olhar-se em espelhos,<br />
resolve, enfim, mirá-lo, mas dessa vez não vê seu reflexo. Sua imagem havia desaparecido por<br />
completo, como se o processo que havia começado tempos atrás tivesse continuado por si próprio.<br />
Desse acontecimento surge a questão principal do conto: existe algo no ser realmente<br />
considerado individual ou tudo é decorrente de influências externas? É aparência e não essência?<br />
Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao<br />
termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência<br />
central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então o que se me fingia de um<br />
suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de<br />
soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências e tudo o que na<br />
impermanência se define? [...] Seríamos não muito mais que as crianças – o espírito do<br />
viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a<br />
memória. (ROSA, 1963, p. 67)<br />
Não ver sua imagem refletida no espelho faz o personagem imaginar que seria um ser “desalmado”,<br />
o narrador mostra inclinação à aceitação do mito do reflexo do espelho como a<br />
representação da alma, o que nos leva a refletir sobre o problema a partir da colocação oportuna de<br />
Menouar sobre a questão. Segundo o estudioso:<br />
A busca do rosto verdadeiro do homem desenvolve-se em duas etapas: a primeira é a busca<br />
narcisista, que significa a individuação extrema e a que ameaça a própria identidade. A<br />
segunda etapa é a busca espiritual-humanista na identificação com o sofrer e amar, que lhe<br />
revela o seu eu verdadeiro. (2000, p. 68)<br />
O personagem passou a acreditar, então, que diante do espelho existia um duplo de si<br />
mesmo, primeiramente representado por um monstro e depois pela falta do reflexo. A imagem<br />
repugnante de si seria a mistura de todas suas expressões, sentimentos guardados, cicatrizes etc.<br />
Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa<br />
obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta das pálpebras, a tocaia com a luz derepente<br />
acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência.<br />
Mirava-me, também, em marcados momentos–de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado,<br />
extrema alegria ou tristeza. (ROSA, 1963, p. 64)<br />
Já a falta de seu reflexo no espelho significa a ausência de todos esses elementos formadores de si,<br />
resultados de seu experimento. Para Rosset (2008, p. 90), o espelho é uma forma recorrente nos<br />
casos de busca do eu. Porém, o espelho apresenta “„uma falsa evidência‟, quer dizer, a ilusão de<br />
uma visão. Ele não mostra o eu, mas um inverso, um outro; não meu corpo, mas uma superfície, um<br />
reflexo”. Ao buscar seu reflexo nele, o personagem procura uma prova de que ele existe de verdade.<br />
ISBN: 978-85-7621-031-3