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01- Delírio

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negativos da intervenção; na ausência do deliria nervosa, algumas pessoas acham de mau gosto ter filhos.<br />

Por sorte, são poucos os casos de distanciamento completo — em que uma mãe ou um pai não<br />

consegue estabelecer um vínculo normal, apropriado e responsável com os filhos e acaba afogando-os,<br />

sufocando-os ou espancando-os até a morte quando choram.<br />

Mas foi dois o número de filhos que os avaliadores decidiram para Marcia. Na época, pareceu uma<br />

boa escolha. Sua família havia obtido altos índices de estabilidade na análise anual. O marido, cientista,<br />

era muito respeitado. Eles moravam em uma casa enorme na rua Winter. Marcia preparava todas as<br />

refeições e dava aulas de piano para ocupar o tempo livre.<br />

Mas, quando surgiu a suspeita de que o marido de Marcia era um simpatizante, é claro que tudo<br />

mudou. Ela e as filhas, Jenny e Grace, foram obrigadas a se mudar de volta para a casa da mãe de Marcia,<br />

minha tia Carol, e aonde quer que fossem as pessoas sussurravam e apontavam para elas. Grace não se<br />

lembra disso, é claro; eu me surpreenderia se ela tivesse qualquer lembrança dos pais.<br />

O marido de Marcia desapareceu antes do julgamento. Provavelmente, foi uma coisa boa. Os<br />

julgamentos servem mais para manter as aparências. Simpatizantes quase sempre são executados.<br />

Quando não, ficam trancados nas Criptas para cumprir três sentenças consecutivas de prisão perpétua.<br />

Marcia sabia disso, é claro. Tia Carol acha que foi por isso que seu coração parou apenas alguns meses<br />

após o desaparecimento do marido, quando ela foi acusada no lugar dele. Um dia depois de receber a<br />

intimação, ela estava caminhando pela rua e pá! Um ataque cardíaco.<br />

Corações são frágeis. Por isso é preciso ser tão cuidadoso.<br />

Hoje o dia será quente, posso perceber. Já está quente no quarto e, quando abro a janela para deixar<br />

sair o cheiro de laranja, o ar lá fora parece denso e pesado como uma língua. Respiro fundo, inalando o<br />

aroma limpo de algas e de madeira úmida, ouvindo os gritos distantes das gaivotas voando em círculos<br />

infinitos sobre a baía, em algum lugar além dos prédios baixos, cinzentos e oblíquos. Na rua, o motor de<br />

um carro é ligado. O ruído me assusta e dou um pulo.<br />

— Nervosa com a avaliação?<br />

Eu me viro. Tia Carol está na porta do quarto, com as mãos unidas e os dedos cruzados.<br />

— Não — respondo, apesar de ser mentira.<br />

Ela sorri discretamente, apenas algo breve e efêmero.<br />

— Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. Tome banho e depois eu ajudo a pentear seu cabelo.<br />

Podemos revisar suas respostas no caminho.<br />

— Tudo bem.<br />

Minha tia continua me encarando. Eu me sinto pouco à vontade, e cravo as unhas no parapeito atrás<br />

de mim. Sempre detestei que me olhassem. Obviamente, precisarei me acostumar. Durante o exame,<br />

quatro avaliadores passarão quase duas horas me encarando. Vestirei uma camisola fina de plástico meio<br />

transparente, como aquelas usadas em hospitais, para que possam ver meu corpo.<br />

— Sete ou oito, eu diria — diz minha tia, torcendo os lábios. É uma nota satisfatória, e eu ficaria<br />

feliz com ela. — Mas você não receberá mais que seis se não se arrumar.<br />

O último ano de escola está quase acabando, e a avaliação será minha prova final. Nesses últimos<br />

quatro meses fiz todos os meus testes curriculares — matemática, ciências, avaliações orais e escritas,<br />

sociologia, psicologia e fotografia (uma eletiva de especialização) — e devo receber os resultados nas<br />

próximas semanas. Tenho bastante certeza de que fui bem o suficiente para ser encaminhada para uma<br />

universidade. Sempre fui uma aluna razoável. Os assessores acadêmicos vão analisar minhas qualidades e<br />

fraquezas e me encaminharão a uma faculdade para uma formação.<br />

A avaliação é o último passo para que eu seja pareada. Nos meses seguintes, os avaliadores me<br />

enviarão uma lista de quatro ou cinco compatibilidades aprovadas. Um deles se tornará meu marido<br />

depois que eu me formar. (Presumindo que eu obtenha aprovação em todas as disciplinas. Garotas que<br />

não passam para a universidade são pareadas e se casam logo após o ensino médio.) Os avaliadores farão

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