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01- Delírio

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música de verdade — não aquelas músicas arrumadinhas que tocam na Série de Concertos de Portland,<br />

com ritmos chatos e notas alegres. Eles não estão fazendo nada de tão ruim.<br />

Então me lembro de outra coisa que Alex disse: Ninguém está machucando ninguém.<br />

Além disso, sempre há a possibilidade de que Hana não se tenha atrasado e que ela esteja na rua, sem<br />

saber de nada, enquanto as batidas se aproximam cada vez mais. Esse pensamento me faz fechar os<br />

olhos com força, bem como o de dezenas de lâminas brilhantes descendo sobre ela. Se Hana não for<br />

jogada na prisão, será levada diretamente aos laboratórios — será curada antes do amanhecer,<br />

independentemente dos perigos ou dos riscos.<br />

De alguma forma, apesar de meus pensamentos acelerados e do fato de que a cozinha continua<br />

girando freneticamente, consigo lavar toda a louça. Também tomei uma decisão.<br />

Preciso ir. Preciso alertá-la.<br />

Preciso alertar a todos.<br />

* * *<br />

Até Rachel e David irem embora e todos se recolherem para dormir já é meia-noite. Cada segundo que<br />

passa parece uma agonia. Só posso torcer para que o porta a porta na península esteja levando mais<br />

tempo que o habitual e que demore um pouco para os reguladores chegarem a Deering Highlands.<br />

Talvez tenham decidido nem passar lá. Considerando que a maioria das casas está vazia, essa é sempre<br />

uma possibilidade. Mesmo assim, como Deering Highlands era um foco de resistência em Portland, essa<br />

ideia parece improvável.<br />

Saio da cama, sem me incomodar em tirar as calças e a camiseta com que durmo, ambas pretas.<br />

Então, calço sapatilhas pretas e, apesar de estar fazendo um calor de mil graus, puxo um gorro preto do<br />

armário. Todo cuidado é pouco hoje.<br />

Quando estou prestes a abrir a porta do quarto ouço um pequeno barulho atrás de mim, como o<br />

miado de um gato. Viro-me. Gracie está sentada na cama, observando-me.<br />

Por um segundo, apenas nos encaramos. Se Gracie emitir algum som, sair da cama ou fizer qualquer<br />

gesto, vai acordar Jenny, e então será meu fim, estarei acabada, c’est fini. Estou tentando pensar no que<br />

posso dizer para tranquilizá-la, tentando inventar uma mentira, mas então, milagre dos milagres, ela<br />

simplesmente volta a se deitar e fecha os olhos. E apesar de estar muito escuro eu poderia jurar que há<br />

um ligeiríssimo sorriso em seu rosto.<br />

Sinto uma onda rápida de alívio. Uma vantagem no fato de que Gracie se recusa a falar? Sei que ela<br />

não vai me entregar.<br />

Saio para a rua sem outros percalços, lembrando-me até mesmo de pular o antepenúltimo degrau da<br />

escada, que na outra vez soltou um rangido tão horroroso que tive certeza de que Carol acordaria.<br />

Após o barulho e a comoção das batidas a rua está assustadoramente vazia e silenciosa. Todas as<br />

janelas estão escuras e as cortinas, abaixadas, como se as casas estivessem tentando dar as costas para a<br />

rua ou se proteger de olhos curiosos. Um pedaço de papel vermelho passa por mim, girando ao vento<br />

como as folhas secas que se veem em filmes antigos de faroeste. Reconheço-a como um aviso da batida,<br />

uma proclamação feita com palavras impronunciáveis, explicando a legalidade da suspensão dos direitos<br />

de todo mundo por uma noite. Fora isso, poderia ser uma noite qualquer — mais uma noite quieta,<br />

morta, comum.<br />

Só que no vento, sutilmente, é possível ouvir o murmúrio distante de passos e um ganido agudo,<br />

como se alguém estivesse chorando. Os sons são tão baixos que quase podem ser confundidos com os<br />

ruídos do oceano ou do vento. Quase.

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