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01- Delírio

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quinze<br />

Por último, Deus criou Adão e Eva, para viverem juntos e felizes como marido e mulher: parceiros eternos. Eles viveram<br />

pacificamente durante anos em um lindo jardim cheio de plantas altas e retas, que cresciam em fileiras organizadas, e de animais<br />

de estimação bem-comportados. Suas mentes eram tão claras e tranquilas quanto o céu azul-claro e sem nuvens que se estendia<br />

como uma tenda sobre suas cabeças. Intocados por doenças, dores ou desejos. Não sonhavam. Não faziam perguntas. A cada<br />

manhã, acordavam tão renovados quanto recém-nascidos. Tudo era sempre igual, mas sempre parecia novo e bom.<br />

— Gênesis: uma história completa do mundo e do universo conhecido, Steven Horace, Ph.D., Universidade de Harvard<br />

No dia seguinte, um sábado, acordo pensando em Alex. E então tento me levantar, e sinto uma dor<br />

percorrer minha perna. Levanto o pijama e vejo uma pequena mancha de sangue na camiseta que Alex<br />

enrolou em minha panturrilha. Sei que deveria lavar o ferimento, trocar a atadura ou fazer algo, mas<br />

tenho muito medo de ver a gravidade da situação. Os detalhes da festa — gritos, empurrões, cachorros e<br />

cassetetes girando no ar, mortais — voltam em uma onda, e por um instante tenho certeza de que vou<br />

vomitar. Então, a tonteira diminui e penso em Hana.<br />

Nosso telefone fica na cozinha. Minha tia está lavando a louça, e me olha com alguma surpresa<br />

quando desço. Vejo-me rapidamente no espelho do corredor. Estou péssima — cabelo todo<br />

desgrenhado, olheiras enormes — e acho inacreditável que alguém sequer possa me achar bonita.<br />

Mas alguém acha. Pensar em Alex faz um calor dourado se espalhar por meu corpo.<br />

— É melhor se apressar — diz Carol. — Você vai se atrasar para o trabalho. Eu já ia acordá-la.<br />

— Só preciso ligar para Hana — digo. Puxo o fio do telefone ao máximo e me encosto na despensa,<br />

para ter pelo menos alguma privacidade.<br />

Tento a casa de Hana, primeiro. Um, dois, três, quatro, cinco toques. Então, a secretária eletrônica é<br />

ativada. “Você ligou para a casa dos Tate. Por favor, deixe um recado de não mais de dois minutos...”<br />

Desligo rapidamente. Meus dedos começaram a tremer, e digito com dificuldade o número do<br />

celular de Hana. Direto para a caixa postal.<br />

A saudação é a mesma de sempre (“Oi, lamento não poder atender. Ou talvez não, dependendo de quem está<br />

ligando.”), com uma voz pouco clara, atrapalhada por uma gargalhada reprimida. Escutar aquilo — a<br />

normalidade da mensagem —, após a noite passada, me dá um choque, como se de repente eu sonhasse<br />

que estou em um lugar no qual não pensava há muito tempo. Lembro-me do dia em que ela gravou a<br />

saudação. Foi depois da escola; e estávamos em seu quarto, e ela tentou quase um milhão de saudações<br />

antes de escolher aquela. Eu estava entediada e ficava batendo nela com um travesseiro cada vez que ela<br />

queria tentar só mais uma.<br />

— Hana, você precisa me ligar — digo ao telefone, mantendo a voz o mais baixo possível. Sei muito<br />

bem que minha tia está ouvindo. — Vou trabalhar hoje. Você pode me encontrar na loja.<br />

Desligo, sentindo-me insatisfeita e culpada. Ontem à noite, enquanto eu estava no abrigo com Alex,<br />

ela poderia estar machucada ou em apuros; eu deveria ter feito mais para encontrá-la.<br />

— Lena. — Minha tia me chama incisivamente à cozinha quando estou subindo a escada para me<br />

arrumar.<br />

— Sim?<br />

Ela avança alguns passos. Algo em sua expressão me deixa ansiosa.<br />

— Você está mancando? — pergunta ela.

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