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— Você está bem, Lena? — pergunta meu tio, ajeitando os óculos como se esperasse me enxergar<br />
melhor. — Você parece um pouco estranha.<br />
— Estou bem. — Empurro o ravióli em meu prato. Em geral, consigo comer metade de uma caixa,<br />
principalmente após uma longa corrida (e ainda sobra espaço para sobremesa), mas agora mal consigo<br />
engolir algumas garfadas. — Apenas estressada.<br />
— Deixe-a em paz — diz minha tia. — Ela está chateada com as avaliações. Não saíram como o<br />
planejado.<br />
Ela encara meu tio, e eles trocam um olhar rápido. Sinto uma onda de animação. É raro que meus<br />
tios se olhem desse jeito, um olhar sem palavras, cheio de significado. Na maioria das vezes, suas<br />
interações são limitadas ao de sempre — meu tio conta histórias sobre o trabalho, minha tia fala sobre<br />
os vizinhos. O que temos para o jantar? Há um vazamento no telhado. Blá-blá-blá. Penso que, pela primeira vez,<br />
vão mencionar a Selva e os Inválidos. Mas, então, meu tio balança minimamente a cabeça.<br />
— Esse tipo de confusão acontece o tempo todo — diz ele, espetando um ravióli com o garfo. —<br />
Outro dia mesmo pedi a Andrew que fizesse uma nova encomenda de três caixas de suco de laranja Vik.<br />
Mas ele errou os códigos e adivinha o que chegou? Três caixas de leite para criança. Eu disse a ele, eu<br />
disse: “Andrew…”<br />
Desligo-me da conversa outra vez, grata por meu tio ser tão falante e feliz por minha tia ter me<br />
defendido. A única vantagem em ser tímida é que ninguém vem perturbar quando você quer ficar<br />
sozinha. Inclino-me para a frente e dou uma olhada no relógio da cozinha. Sete e meia, e nem acabamos<br />
de comer. E depois precisarei ajudar a tirar a mesa e lavar a louça, o que sempre leva uma eternidade; a<br />
máquina de lavar louça gasta energia demais, então lavamos tudo à mão.<br />
Lá fora o céu está riscado por filamentos dourados e cor-de-rosa. Parece a massa de bala que gira na<br />
Sugar Shack do centro da cidade, toda lustrosa, elástica e colorida. Será um belo pôr do sol hoje.<br />
Naquele instante, o impulso para ir é tão forte que preciso apertar as bordas de minha cadeira para não<br />
me levantar subitamente e sair correndo pela porta.<br />
Enfim, decido parar de me preocupar e deixo a decisão nas mãos da sorte, do destino ou do que<br />
quer que seja. Se terminarmos de comer e de lavar a louça a tempo de eu chegar à enseada Back, eu vou.<br />
Caso contrário, fico. Sinto-me um milhão de vezes melhor depois disso e até consigo comer mais um<br />
pouco de ravióli antes de Jenny (milagre dos milagres) ter um impulso repentino e esvaziar seu prato e<br />
minha tia anunciar que posso tirar a mesa quando eu tiver terminado.<br />
Levanto-me e começo a empilhar os pratos de todo mundo. São quase oito horas. Mesmo que eu<br />
consiga lavar tudo em quinze minutos — com muito otimismo —, ainda assim seria difícil chegar à<br />
praia até oito e meia. E muito mais difícil chegar em casa antes das nove, horário do toque de recolher<br />
que a cidade estabeleceu para não curados.<br />
E se eu for pega na rua depois do horário…<br />
A verdade é que não sei o que aconteceria. Nunca violei o toque de recolher.<br />
Bem quando aceito que não há como ir até a enseada Back e voltar a tempo, minha tia faz o<br />
impensável. Quando estou prestes a pegar seu prato, ela me interrompe.<br />
— Não precisa lavar a louça hoje, Lena. Deixe que eu cuido disso.<br />
Enquanto fala, ela estica seu braço e toca o meu. Assim como antes, o toque é tão passageiro e frio<br />
quanto o vento.<br />
E, antes que eu consiga pensar no que isso significa, digo:<br />
— Na verdade, preciso dar um pulo rápido até a casa de Hana.<br />
— Agora? — Uma expressão alarmada (ou desconfiada?) passa pelo rosto de minha tia. — São<br />
quase oito horas.<br />
— Eu sei. Nós… Ela… Ela tinha ficado de me dar um guia de estudos. Acabei de me lembrar.<br />
Agora a expressão de desconfiança — é desconfiança, com certeza — se acomoda, aproximando as