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01- Delírio

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parece se transformar em uma série de imagens desconexas: um círculo branco e radiante de luz<br />

cercando a guarita vinte e um, que se expande consideravelmente, como se sentisse fome e estivesse<br />

prestes a nos engolir; dentro dela, um guarda jogado em uma cadeira, dormindo de boca aberta; Alex se<br />

virando para mim, sorrindo — é possível que ele esteja sorrindo? —, pedras dançando sob os meus pés.<br />

Tudo parece distante, tão irreal e sem substância quanto uma sombra projetada por uma chama. Mesmo<br />

eu não pareço real e não consigo sentir minha respiração ou meus movimentos, apesar de certamente<br />

estar fazendo ambos.<br />

E então, de repente, chegamos à cerca. Alex corre e pula, e por um segundo para no ar. Quero gritar:<br />

Pare! Pare! Imagino o estalo e os chiados enquanto seu corpo se liga a cinquenta mil volts de eletricidade,<br />

mas ele monta na cerca, que balança em silêncio: morta e fria, exatamente como ele disse.<br />

Eu deveria subir atrás dele, mas não consigo. Não naquele momento. Uma sensação de admiração<br />

me invade, afastando lentamente o medo. Tenho pavor da cerca desde que era bebê. Nunca estive a<br />

menos de um metro e meio dela. Todo mundo sempre foi alertado a respeito, essa ordem foi<br />

impregnada em nós. Disseram que iríamos fritar; disseram que faria nossos corações enlouquecerem e<br />

nos mataria instantaneamente. Agora, estendo o braço e ponho a mão na cerca, passo os dedos ao longo<br />

dela. Morta, fria, inofensiva, o mesmo tipo de cerca que a prefeitura usa em parques e em pátios<br />

escolares. Naquele instante, realmente percebo quão profundas e complexas são as mentiras, como elas<br />

se espalham por Portland como esgotos, cobrindo tudo e enchendo a cidade com o fedor: a cidade<br />

inteira construída dentro de um perímetro de mentiras.<br />

Alex escala rapidamente; já chegou à metade da cerca. Olha por cima do ombro e vê que ainda estou<br />

ali como uma idiota, sem me mexer. Ele mexe a cabeça para mim como se dissesse: O que você está<br />

fazendo?<br />

Volto a colocar a mão na cerca e a recolho imediatamente: um choque me atinge de repente, mas<br />

não tem nada a ver com a voltagem que deveria estar pulsando ali. Algo acaba de me ocorrer.<br />

Eles mentiram a respeito de tudo — da cerca, da existência dos Inválidos, de um milhão de outras<br />

coisas. Disseram que as batidas eram para nossa própria proteção. Disseram que os reguladores só<br />

estavam interessados em manter a paz.<br />

Disseram que o amor era uma doença. Disseram que ele acabaria nos matando.<br />

Pela primeira vez percebo que isso também pode ser mentira.<br />

Alex balança cuidadosamente para a frente e para trás na cerca, fazendo-a balançar um pouco. Olho<br />

para cima e ele gesticula para mim outra vez. Não estamos seguros. Está na hora de avançar. Estico o<br />

braço, apoio o corpo na cerca e começo a escalar. Estar na cerca é, sob alguns aspectos, ainda pior do<br />

que estar em meio ao cascalho. Ao menos lá tínhamos mais controle — poderíamos ver se aparecesse<br />

um guarda patrulhando, poderíamos voltar correndo para a enseada e torcer para que ele nos perdesse<br />

de vista na escuridão e entre as árvores. Seria uma pequena esperança, mas, ainda assim, era algo. Aqui,<br />

estamos de costas para as guaritas, e eu me sinto um alvo móvel gigantesco com uma grande placa às<br />

costas dizendo ATIRE EM MIM.<br />

Alex chega ao topo antes de mim, e vejo-o passar lentamente, muito lentamente, por cima das<br />

espirais de arame farpado. Ele ultrapassa e desce com cuidado alguns centímetros pelo outro lado,<br />

parando então para esperar por mim. Sigo exatamente seus movimentos. Estou tremendo agora, por<br />

causa do medo e do esforço, mas consigo atravessar o topo da cerca e, então, desço do outro lado. Meus<br />

pés tocam o chão. Alex segura minha mão e me puxa rapidamente para o bosque, para longe da<br />

fronteira.<br />

Para a Selva.

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