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01- Delírio

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— Não se importa. — Agora sei que estou sendo infantil, mas não posso evitar. — Ela também não<br />

se importava. Não se importava nem um pouco.<br />

— Isso não é verdade.<br />

— Então, por que ela não me procurou? — Continuo sem olhar para ele, apoiando a mão na<br />

parede, sentindo que ela também pode desaparecer a qualquer instante. — Onde ela está agora? Por que<br />

não veio me procurar?<br />

— Você sabe por quê — diz ele, com mais firmeza. — Sabe o que teria acontecido se ela fosse<br />

capturada outra vez, se fosse pega com você. Seria o fim de vocês duas.<br />

Sei que ele tem razão, mas isso não melhora nada. Continuo teimando, não consigo me conter.<br />

— Não é isso. Ela não se importa, e você não se importa. Ninguém se importa. — Levo o antebraço<br />

ao rosto e esfrego o nariz.<br />

— Lena. — Alex segura meus cotovelos e me vira para olhar para ele. Quando me recuso a encarálo,<br />

ele levanta meu queixo, forçando-me a olhar para ele. — Magdalena — diz ele, usando meu nome<br />

completo pela primeira vez desde que nos conhecemos. — Sua mãe amava você. Entende? Ela amava<br />

você. Ainda ama. Queria que você estivesse em segurança.<br />

Sinto uma onda de calor. Pela primeira vez na vida não sinto medo dessa palavra. Algo parece se<br />

abrir dentro de mim, se espreguiçar, como um gato tentando se aquecer ao sol, e quero muito que ele a<br />

repita.<br />

Sua voz é infinitamente suave. Seus olhos são carinhosos e cheios de luz, como o sol se derretendo<br />

feito manteiga pelas árvores em uma noite morna de outono.<br />

— E eu também amo você. — Seus dedos contornam minha mandíbula e tocam brevemente meus<br />

lábios. — Você deveria saber. Você precisa saber.<br />

É então que acontece.<br />

Ali, entre duas caçambas de lixo nojentas em um beco sujo, com o mundo inteiro sucumbindo a<br />

meu redor, ouvindo Alex dizer essas palavras, todo o medo que carreguei desde que aprendi a me sentar,<br />

a levantar e a respirar — desde que me disseram que, no fundo, havia algo errado comigo, algo podre e<br />

doente, algo que precisava ser suprimido; desde que me disseram que eu estava sempre a um passo de<br />

ser arruinada — se desfaz de uma vez. Aquilo — meu âmago mais profundo, o mais íntimo de meu ser<br />

— aumenta e se desdobra ainda mais, subindo como uma bandeira: fazendo com que eu me sinta mais<br />

forte do que nunca.<br />

Abro a boca e digo:<br />

— Eu também amo você.<br />

* * *<br />

É estranho, mas depois desse momento no beco, de repente entendo o que meu nome representa, a<br />

razão por que minha mãe me chamou de Magdalena e o significado da antiga história bíblica sobre José<br />

ter abandonado Maria Magdalena. Entendo que ele abriu mão dela por um motivo. Ele a deixou para<br />

que ela pudesse ser salva, embora tenha sido um grande sofrimento perdê-la.<br />

Ele abriu mão dela por amor.<br />

Acho, talvez, que minha mãe sabia, mesmo quando nasci, que um dia precisaria fazer o mesmo.<br />

Acho que isso faz parte de amar alguém: saber abrir mão de algo. Às vezes, saber abrir mão da pessoa<br />

amada.<br />

Alex e eu conversamos sobre tudo que deixarei para trás quando fugir com ele para a Selva. Ele quer<br />

ter certeza de que sei o que estamos fazendo. Entrar na padaria no final do dia e comprar pães de

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