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01- Delírio

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vinte e três<br />

Comida pro corpo, leite pros ossos,<br />

Gelo pra um corte, pedras no bucho.<br />

— Provérbio popular.<br />

Mesmo depois que os portões de ferro se fecham atrás de nós e as Criptas se afastam, a sensação de<br />

estar enclausurada não desaparece. Ainda há uma pressão forte e terrível em meu peito, e preciso lutar<br />

para respirar direito.<br />

Um velho ônibus da prisão, com o motor barulhento, nos leva da fronteira para Deering. De lá, Alex<br />

e eu andamos de volta ao centro de Portland, ficando em lados opostos da calçada. De vez em quando,<br />

ele vira a cabeça para mim, abrindo e fechando a boca, como se estivesse pronunciando uma série de<br />

palavras inaudíveis. Sei que está preocupado comigo, e provavelmente espera que eu tenha uma crise,<br />

mas não consigo encará-lo ou falar com ele. Mantenho o olhar fixo à minha frente, mantenho os pés<br />

avançando. Fora a dor terrível no peito e no estômago, meu corpo parece entorpecido. Não consigo<br />

sentir o chão abaixo de mim ou o vento passando pelas árvores e batendo em meu rosto; não consigo<br />

sentir o calor do sol, que, superando todas as expectativas, atravessou as terríveis nuvens negras e<br />

acendeu o mundo com uma estranha cor esverdeada, como se tudo estivesse submerso em água.<br />

Quando eu era pequena e minha mãe morreu — quando pensei que ela tivesse morrido —, lembrome<br />

de sair para minha primeira corrida e me perder no final da rua Congress, onde eu havia passado a<br />

vida inteira brincando. Virei uma esquina e me vi na frente de uma lavanderia e, de repente, não<br />

conseguia lembrar onde eu estava ou se minha casa ficava à esquerda ou à direita. Nada parecia igual.<br />

Tudo parecia uma réplica pintada, frágil e distorcida, como se eu estivesse em um quarto dos espelhos<br />

em um parque de diversões, vendo o reflexo de meu mundo normal.<br />

É assim que me sinto agora, de novo. Perdida, encontrada e perdida novamente, tudo ao mesmo<br />

tempo. E agora sei que em algum lugar neste mundo, nas terras selvagens do outro lado da cerca, minha<br />

mãe está viva, respirando, suando, movendo-se e pensando. Fico imaginando se ela pensa em mim, e a<br />

dor se aprofunda, fazendo-me perder completamente o fôlego, e preciso parar de andar e me curvar,<br />

com a mão na barriga.<br />

Ainda estamos fora da península, não longe do número trinta e sete na rua Brooks, onde as casas são<br />

separadas por amplos trechos de mato alto e por jardins abandonados cheios de lixo. Mesmo assim, há<br />

pessoas na rua, inclusive um homem que identifico imediatamente como um regulador: mesmo agora,<br />

antes do meio-dia, ele tem um megafone pendurado no pescoço e um cassetete preso à cintura. Acho<br />

que Alex também o vê. Ele se mantém a alguns metros de mim, examinando a rua, tentando parecer<br />

despreocupado, mas murmura para mim:<br />

— Consegue se mexer?<br />

Preciso lutar contra a dor. Ela se irradia por todo o meu corpo agora, latejando até a cabeça.<br />

— Acho que sim — consigo dizer.<br />

— Beco. À sua esquerda. Vá.<br />

Endireito minhas costas o máximo possível — pelo menos o suficiente para chegar ao beco entre<br />

dois edifícios maiores. Na metade do beco há algumas caçambas de metal, dispostas lado a lado e cheias

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