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01- Delírio

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problema. Você pode ficar.<br />

Assim que falo isso, percebo que Hana não se ofereceu para vir embora comigo. Ela está me<br />

olhando com uma mistura muito estranha de arrependimento e pena.<br />

— Posso voltar com você, se quiser — diz ela, mas sei que só está se oferecendo agora para que eu<br />

me sinta melhor.<br />

— Não, não. Vou ficar bem.<br />

Minhas bochechas estão queimando, e dou um passo para trás, desesperada para sair daqui. Trombo<br />

em alguém, um menino, que se vira e sorri para mim. Afasto-me rapidamente dele.<br />

— Lena, espere.<br />

Hana tenta me segurar de novo. Apesar de ela já estar com uma bebida, ponho meu copo em sua<br />

mão vazia de modo que ela tenha de parar, franzindo o rosto momentaneamente enquanto tenta<br />

equilibrar os dois copos com um braço dobrado, e nesse instante me esquivo e saio do alcance dela.<br />

— Vou ficar bem, prometo. Amanhã nos falamos.<br />

Em seguida passo por um espaço estreito entre duas pessoas — este é o único benefício de se medir<br />

um e cinquenta e oito: uma vantagem em todos os espaços apertados — e, antes que eu perceba, Hana<br />

ficou para trás, engolida pela multidão. Abro caminho até longe do celeiro, olhando para baixo e<br />

torcendo para que minhas bochechas esfriem logo.<br />

Imagens voam à minha volta, um borrão, e fazem eu me sentir como se estivesse sonhando outra<br />

vez. Menino. Menina. Menino. Menina. Rindo, empurrando-se, tocando os cabelos uns dos outros.<br />

Nunca, em toda a minha vida, me senti tão diferente e deslocada. Ouço um grito alto, mecanizado, e<br />

então a banda volta a tocar, mas agora a música não provoca nada em mim. Eu nem hesito.<br />

Simplesmente continuo andando, rumo à colina, imaginando o silêncio frio dos campos sob as estrelas,<br />

as ruas escuras e familiares de Portland, o ritmo regular das patrulhas, marchando silenciosamente em<br />

sincronia, as respostas em seus rádios — constante, normal, familiar, meu.<br />

A multidão finalmente começa a se tornar menos densa. Estava quente ali, em meio a tanta gente, e a<br />

brisa toca minha pele e resfria minha face. Começo a me acalmar um pouco, e, fora da multidão,<br />

permito-me uma olhada para o palco. O celeiro, aberto ao céu e à noite e brilhando com a luz branca,<br />

lembra uma pequena chama em uma mão espalmada.<br />

— Lena!<br />

É estranho como reconheço instantaneamente a voz, embora só a tenha ouvido uma vez, por dez,<br />

quinze minutos, no máximo — é a risada que corre sob ela, como alguém se inclinando para contar<br />

algum segredo muito bom no meio de uma aula muito chata. Tudo se congela. O sangue para de circular<br />

em minhas veias. Minha respiração para. Por um segundo até mesmo a música some, e tudo o que ouço<br />

é algo firme, baixo e bonito, como uma batida distante, e penso: Estou ouvindo meu coração, mesmo<br />

sabendo que isso é impossível, porque meu coração também parou. Minha visão consegue focar-se<br />

novamente, e tudo o que vejo é Alex, usando os ombros para abrir caminho pela multidão para vir até<br />

mim.<br />

— Lena! Espere.<br />

Um breve lampejo de horror passa por mim — por um segundo louco penso que ele está aqui com<br />

uma patrulha, em uma batida policial ou algo do tipo —, mas então vejo que ele está vestido<br />

normalmente, com calça jeans, tênis surrados com cadarços azuis e uma camiseta desbotada.<br />

— O que você está fazendo aqui? — gaguejo quando ele me alcança.<br />

Ele sorri.<br />

— É bom ver você também.<br />

Ele deixou alguma distância entre nós, e fico agradecida por isso. À meia-luz, não consigo identificar<br />

a cor de seus olhos, e neste momento não preciso de distração, não preciso me sentir como nos<br />

laboratórios, quando ele se inclinou e sussurrou para mim — a plena consciência dos únicos dois

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