04.04.2017 Views

01- Delírio

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

se torna mais clara, mais alta. É diferente de tudo o que já ouvi. Definitivamente, não é como as músicas<br />

autorizadas que podemos baixar da BMFA: formais, harmoniosas e estruturadas, o tipo de música<br />

tocada em um palco no parque Deering Oaks durante os shows oficiais no verão.<br />

Alguém está cantando: uma linda voz, tão densa e pesada quanto mel morno, percorrendo uma<br />

escala tão rapidamente que fico tonta só de ouvir. A música executada sob a voz é estranha, dissonante e<br />

selvagem — mas nada como os ganidos e arranhões que ouvi hoje no computador de Hana, embora<br />

reconheça certas semelhanças, certos padrões de melodia e ritmo. Aquela música era metálica e horrível,<br />

soava indistinta nas caixas de som. Esta música flui, irregular, triste. Curiosamente, ela me faz lembrar o<br />

oceano durante uma forte tempestade, com as ondas se agitando e quebrando e a espuma do mar sendo<br />

jogada nas docas; a maneira como nos deixa sem fôlego, com seu poder e sua enormidade.<br />

É exatamente o que acontece quando ouço a música, quando chego ao cume da colina, e o celeiro<br />

parcialmente arruinado e a casa caindo aos pedaços aparecem diante de mim, no mesmo instante em que<br />

a música ganha volume, como uma onda prestes a quebrar: de repente, fico sem ar, embasbacada com<br />

aquela beleza. Por um segundo parece que realmente estou olhando para o oceano — um mar de<br />

pessoas se contorcendo e dançando à luz que escapa do celeiro, como sombras ao redor de uma chama.<br />

O celeiro está completamente arrasado: escancarado e carbonizado pelo incêndio, aberto para o<br />

exterior. Apenas metade continua de pé — fragmentos de três paredes, um pedaço do telhado e parte de<br />

uma plataforma elevada que deve ter sido utilizada para armazenar feno. É ali que a banda está tocando.<br />

Árvores esguias e finas começaram a surgir pelo campo. Árvores mais antigas, devastadas pelo fogo e<br />

completamente desprovidas de galhos ou folhas, apontam para o céu como pálidos dedos<br />

fantasmagóricos.<br />

Quinze metros depois do celeiro, vejo a faixa profunda de escuridão onde começa o território não<br />

regulamentado. A Selva. Não consigo ver a grade da fronteira a essa distância, mas imagino que posso<br />

senti-la, perceber a eletricidade que vibra no ar. Só me aproximei dela algumas vezes. Uma com minha<br />

mãe, há anos, quando ela me fez ouvir o zumbido da eletricidade — uma corrente tão forte que o ar<br />

parece murmurar; é possível levar um choque só de ficar a um metro de distância — e me fez também<br />

prometer que nunca, nunca, nunca encostaria na grade. Ela me contou que quando a cura se tornou<br />

obrigatória algumas pessoas tentaram escapar pela fronteira. Bastou uma das mãos na cerca e elas<br />

acabaram fritas como bacon — lembro que foi exatamente isso o que ela disse: como bacon. Desde<br />

então, corri com Hana ao longo da cerca algumas vezes, sempre tomando cuidado para ficar a uns bons<br />

três metros de distância.<br />

No celeiro, alguém instalou alto-falantes, amplificadores e até dois holofotes imensos, de tamanho<br />

industrial, que deixam todo mundo perto do palco extremamente branco e hiperreal e os outros,<br />

escuros, indistintos, borrados. Uma música termina e a multidão urra, o som de um oceano. Eles devem<br />

estar roubando eletricidade da rede de abastecimento de alguma fazenda, penso. Isso é uma idiotice, nunca encontrarei<br />

Hana, tem gente demais... e então outra música começa, tão feroz e linda quanto a anterior, e é como se a<br />

música atravessasse todo o espaço negro e acertasse algo em meu âmago mais profundo, puxando-me<br />

como uma corda. Desço a colina em direção ao celeiro. O estranho é que isso não é escolha minha.<br />

Meus pés simplesmente vão por conta própria, como se tivessem encontrado uma trilha invisível e<br />

bastasse apenas deslizar, deslizar, deslizar.<br />

Por um instante esqueço que deveria estar procurando por Hana. Sinto-me como se estivesse em um<br />

sonho, no qual coisas estranhas acontecem, mas não parecem estranhas. Tudo está nebuloso — tudo está<br />

envolvido por uma névoa —, e sou preenchida da cabeça aos pés pelo único desejo ardente de me<br />

aproximar da música, de ouvi-la melhor, de que ela continue, continue, continue.<br />

— Lena! Meu Deus, Lena!<br />

Ouvir meu nome me arranca do torpor, e de repente percebo que estou no meio de um enorme<br />

aglomerado de pessoas.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!