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01- Delírio

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Mas, então, ele começa a falar. A história é tão rápida e fluida que posso perceber que ele pensou<br />

muito no assunto, o tipo de história que você conta várias vezes para si mesmo até as arestas ficarem<br />

bem aparadas.<br />

— Nasci na Selva. Minha mãe morreu logo depois; meu pai está morto. Ele nunca soube que teve<br />

um filho. Morei lá na primeira parte de minha vida, meio que indo para lá e para cá. Todos os outros —<br />

Ele hesita levemente, e posso sentir o desgosto em sua voz. — Inválidos cuidavam de mim juntos. Tipo<br />

uma comunidade.<br />

Lá fora os grilos interrompem sua canção temporariamente. Por um segundo é como se nada ruim<br />

tivesse acontecido, como se nada fora do comum tivesse acontecido hoje à noite — apenas mais uma<br />

noite quente e preguiçosa de verão, esperando pela manhã. Uma dor me atravessa naquele momento,<br />

mas nada tem a ver com minha perna. Percebo como tudo é pequeno, nosso mundo inteiro, tudo que<br />

importa — nossas lojas, nossas patrulhas, nossos empregos, até mesmo nossas vidas. Enquanto isso, o<br />

mundo simplesmente continua como sempre, a noite se transformando em dia e voltando a ser noite,<br />

um ciclo infinito; estações se transformando, como um monstro que muda sua pele e a faz crescer<br />

novamente.<br />

Alex continua:<br />

— Vim para Portland aos dez anos, para me juntar à resistência aqui. Não vou explicar como. Foi<br />

complicado. Recebi um número de identidade; recebi um novo sobrenome, um novo endereço. Há mais<br />

de nós do que você imagina, Inválidos e simpatizantes, mais do que qualquer um imagina. Temos gente<br />

na polícia e em todos os departamentos municipais. Temos pessoas até mesmo nos laboratórios.<br />

Sinto arrepios pelos braços quando ele diz isso.<br />

— O que quero dizer é que é possível entrar e sair. Difícil, mas possível. Fui morar com dois<br />

estranhos, ambos simpatizantes, e fui instruído a chamá-los de tios. — Ele dá de ombros ligeiramente a<br />

meu lado. — Eu não me importava. Nunca conheci meus pais verdadeiros, e fui criado por dezenas de<br />

tias e tios diferentes. Não fazia diferença para mim.<br />

Sua voz se tornou muito baixa, e ele parece quase ter esquecido que estou ali. Não sei exatamente<br />

aonde essa história está indo, mas prendo a respiração, com medo de que, se eu sequer exalar, ele pare de<br />

falar.<br />

— Odiei Portland. Odiei tanto que você nem pode imaginar. Todos os prédios e as pessoas<br />

parecendo tão entorpecidas, os cheiros, toda a repressão, e as regras; regras por todos os lados, regras e<br />

muros, regras e muros. Eu não estava acostumado. Sentia como se estivesse em uma jaula. Estamos em<br />

uma jaula: uma jaula delimitada por fronteiras.<br />

Um leve choque pulsa através de mim. Em todos os dezessete anos e onze meses de minha vida,<br />

nunca, nem uma vez sequer, pensei assim. Sempre estive tão acostumada a pensar no que as fronteiras<br />

mantêm fora que não pensei que elas também nos prendem aqui dentro. Agora vejo tudo pelo olhar de<br />

Alex, vejo como deve ter sido para ele.<br />

— No início, tive raiva. Costumava queimar coisas. Papéis, livros, cartilhas escolares. Isso fazia com<br />

que eu me sentisse melhor de alguma forma. — Ele ri suavemente. — Até queimei meu exemplar da<br />

Shhh.<br />

Outro choque me atravessa: desfigurar ou destruir a Shhh é um sacrilégio.<br />

— Eu andava pelas fronteiras durante horas todos os dias. Às vezes, eu chorava. — Ele se encolhe a<br />

meu lado, e posso perceber que está envergonhado. É o primeiro sinal que ele dá em algum tempo de<br />

que sabe que estou aqui, que ele está falando comigo, e o impulso que sinto de estender o braço, pegar<br />

sua mão e apertá-la, ou transmitir alguma espécie de conforto, é quase opressor. Mesmo assim,<br />

mantenho as mãos coladas no chão. — Mas, depois de um tempo, eu simplesmente andava. Gostava de<br />

ver os pássaros. Eles alçavam voo ao nosso lado e pousavam na Selva com a maior facilidade. Iam e<br />

voltavam, iam e voltavam, erguendo-se e rodopiando pelo ar. Eu podia observá-los durante horas.

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