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01- Delírio

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— Sente-se, Helen. Vou ver o que há de errado.<br />

Mas, naquele segundo, a porta azul é aberta, e uma confusão de vacas — vacas mesmo, vivas,<br />

verdadeiras, transpirando e mugindo — entra de forma estrondosa no laboratório.<br />

Definitivamente, uma debandada, penso, e por um segundo estranho e desconexo sinto-me orgulhosa<br />

por ter identificado corretamente o som.<br />

E então percebo que estou sendo carregada por um bando muito grande de animais muito<br />

assustados, e estou a dois segundos de ser esmagada no chão.<br />

No mesmo instante jogo-me em um canto e me abaixo atrás da mesa cirúrgica, onde fico<br />

completamente protegida da massa de animais em pânico. Levanto a cabeça só um pouquinho acima da<br />

mesa para poder enxergar o que está acontecendo. Os avaliadores estão subindo na mesa enquanto<br />

muros de vacas marrons e malhadas os cercam. A avaliadora Um está berrando a plenos pulmões, e<br />

Óculos grita:<br />

— Acalme-se, acalme-se!<br />

Ainda assim, ele se agarra à mulher como se ela fosse um bote salva-vidas e ele corresse risco de se<br />

afogar.<br />

Algumas das vacas têm perucas estranhas penduradas na cabeça; outras estão semicobertas por<br />

camisolas idênticas à que visto. Por um instante, tenho certeza de que estou sonhando. Talvez o dia todo<br />

tenha sido um sonho e vou acordar e descobrir que ainda estou em casa, na cama, na manhã de minha<br />

avaliação. Então, noto o que está escrito nos flancos das vacas: CURA, NÃO. MORTE. As palavras estão<br />

escritas em tinta de modo grosseiro, logo acima dos números recém-marcados que identificam que os<br />

animais foram destinados ao abatedouro.<br />

Um ligeiro arrepio sobe por minha coluna, e tudo começa a se encaixar. A cada dois anos, mais ou<br />

menos, os Inválidos — pessoas que vivem na Selva, o território não regulamentado entre cidades e vilas<br />

reconhecidas — entram sorrateiramente em Portland e armam algum tipo de protesto. Uma vez, vieram<br />

à noite e pintaram caveiras vermelhas na casa de todos os cientistas. Em outra, conseguiram invadir a<br />

central da delegacia de polícia, que coordena todas as patrulhas e guaritas de Portland, e colocaram os<br />

móveis no telhado, até mesmo as máquinas de café. Foi bem engraçado, para falar a verdade — e<br />

impressionante, considerando que o prédio mais seguro de Portland deveria ser aquele. As pessoas da<br />

Selva não enxergam o amor como uma doença e não acreditam na cura. Acham que é uma crueldade.<br />

Por isso, a palavra de ordem.<br />

Agora entendo: as vacas estão vestidas como nós, as pessoas sendo avaliadas. Como se fôssemos<br />

gado.<br />

As vacas se acalmam um pouco. Não correm mais e começaram a se dispersar pelo laboratório. A<br />

avaliadora Um segura uma prancheta e tenta espantar os animais que cercam a mesa, mugindo e<br />

mordendo os papéis espalhados pela superfície — as anotações dos avaliadores, percebo quando uma<br />

vaca puxa uma folha e a rasga com os dentes. Graças a Deus. Talvez as vacas comam todas as anotações e<br />

os avaliadores esqueçam que eu estava fracassando completamente. Meio escondida atrás da mesa — e a<br />

salvo, por enquanto, daqueles cascos duros e ruidosos —, preciso admitir que a situação toda é um<br />

pouco hilária.<br />

Foi quando ouvi. De algum jeito, sobre os roncos, tropeços e gritos, escuto uma risada acima de<br />

mim — baixa, curta e musical, como alguém executando notas em um piano.<br />

A galeria de observação. Um garoto na galeria de observação assiste ao caos. E ele está rindo.<br />

Assim que olho para cima os olhos dele se fixam em meu rosto. A respiração escapa de meu corpo<br />

com um ruído e tudo congela por um segundo, como se eu olhasse para ele através das lentes de uma<br />

câmera, com o máximo de zoom, e o mundo parasse por aquela fração de segundo entre a abertura e o<br />

fechamento do obturador.<br />

Seus cabelos são castanhos e dourados, como as folhas das árvores no outono quando começam a

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