01- Delírio

Esse é o verdadeiro motivo pelo qual ela não fala. As outras palavras são sufocadas por essa única e
gigante; uma palavra que ainda ecoa nos cantos escuros de suas lembranças. Mamãe.
Eu sei. Eu me lembro.
Sento e observo a luz nas paredes ficando mais forte, ouço o grito das gaivotas e tomo um gole de
água do copo ao lado de minha cama. Hoje é dia dois de junho. Noventa e quatro dias.
Gostaria que, por Grace, a cura pudesse vir mais cedo. Conforto-me pensando que ela também
passará pela intervenção. Um dia, ela também será salva, e todo o seu passado e a sua dor se tornarão tão
suavemente palatáveis quanto a comida que alimenta nossos bebês.
Um dia todos seremos salvos.
* * *
Quando me obrigo a descer para o café da manhã — sentindo-me como se alguém estivesse esfregando
areia em meus olhos —, a história oficial do incidente nos laboratórios já foi divulgada. Carol mantém
nossa pequena tevê em volume baixo enquanto prepara o café da manhã, e o murmúrio dos jornalistas
quase me faz dormir de novo: “Ontem um caminhão cheio de gado que iria para o abatedouro se misturou a um
carregamento farmacêutico, resultando no caos hilário e sem precedentes que se vê na tela.” Imagem: enfermeiras
gritando e atacando vacas com as pranchetas.
A explicação não faz o menor sentido, mas, contanto que ninguém mencione os Inválidos, todos
ficam satisfeitos. Não deveríamos saber sobre eles. Eles sequer deveriam existir; supostamente, todas as
pessoas que moravam na Selva foram mortas há mais de cinquenta anos, em uma blitz.
Há cinquenta anos, o governo fechou as fronteiras dos Estados Unidos, que hoje são
constantemente guardadas por militares. Ninguém pode entrar. Ninguém pode sair. Todas as
comunidades sancionadas e aprovadas devem ser contidas por uma fronteira — essa é a lei —, e
qualquer viagem entre comunidades necessita de consentimento oficial do governo municipal, a ser
obtido com seis meses de antecedência. As medidas são para nossa própria proteção. Segurança,
Inviolabilidade, Comunidade: esse é o lema de nosso país.
Na maior parte do tempo, o governo é bem-sucedido. Não vemos uma guerra desde o fechamento
das fronteiras, e quase não há crimes, exceto por incidentes ocasionais de vandalismo ou pequenos
roubos. Não há ódio nos Estados Unidos, ao menos entre os curados. Apenas casos esporádicos de
distanciamento — mas todas as intervenções médicas trazem certos riscos.
No entanto, até agora, o governo fracassou em livrar o país dos Inválidos, e essa é a única falha da
administração e do sistema em geral. Então, não falamos sobre isso. Fingimos que a Selva — e as
pessoas que moram lá — sequer existe. É raro ouvir essa palavra ser pronunciada, exceto quando
alguém suspeito de ser um simpatizante desaparece ou quando um casal doente some antes que a cura
possa ser administrada.
Uma notícia realmente ótima é a seguinte: todas as avaliações de ontem foram invalidadas. Todos
receberemos uma nova data de avaliação, o que significa que terei uma segunda oportunidade. Dessa
vez, juro que não vou pisar na bola. Estou me sentindo completamente idiota por meu ataque no
laboratório. Sentada à mesa do café da manhã, com tudo tão limpo, claro e normal — as canecas azuis
lascadas e cheias de café, os bipes erráticos do micro-ondas (um dos poucos dispositivos eletrônicos,
além das lâmpadas, que Carol nos permite utilizar) —, o dia anterior parece um sonho longo e estranho.
É um milagre, na verdade, que um bando de Inválidos fanáticos tenha decidido soltar uma manada no
exato momento em que eu fracassava no teste mais importante de minha vida. Não sei o que deu em
mim. Penso em Óculos exibindo os dentes e no momento em que ouvi minha boca dizer “cinza” e me