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enterro dela, corri um quilômetro e meio pela primeira vez. Haviam ordenado que eu ficasse no andar<br />
superior, com minhas primas, enquanto minha tia preparava a casa e a comida para o velório. Marcia e<br />
Rachel deveriam me arrumar, mas, enquanto me vestiam, começaram a discutir sobre algum assunto e<br />
deixaram de prestar atenção em mim. Então, desci, com meu vestido aberto até o meio das costas, para<br />
pedir ajuda à minha tia. A Sra. Eisner, vizinha de minha tia na época, estava lá. Quando entrei na<br />
cozinha, ela dizia:<br />
— É horrível, é claro. Mas, de qualquer maneira, não havia esperança para ela. Foi muito melhor<br />
assim. É melhor para Lena também. Quem quer ter uma mãe assim?<br />
Eu não deveria ter ouvido isso. A Sra. Eisner se engasgou de espanto ao me ver e rapidamente<br />
fechou a boca, como uma rolha voltando para uma garrafa. Minha tia simplesmente continuou ali, e<br />
naquele momento foi como se o mundo e o futuro colidissem em um único ponto, e eu entendi que<br />
aquilo — a cozinha, o impecável piso bege de linóleo, as luzes brilhantes e a gelatina verde na bancada<br />
— era tudo o que sobrara agora que minha mãe não existia mais.<br />
De repente, não consegui ficar ali. Não suportava a visão da cozinha de minha tia, que, eu entendi,<br />
seria minha cozinha. Não suportava a gelatina. Minha mãe detestava gelatina. Uma coceira começou a<br />
dominar meu corpo, como se milhares de mosquitos circulassem por meu sangue, picando-me por<br />
dentro, fazendo com que eu quisesse gritar, pular e me contorcer.<br />
Corri.<br />
Hana, com um dos pés em um banco, está amarrando os cadarços quando entro. Meu terrível<br />
segredo é que gosto de correr com Hana porque, em parte, esse é o único e exclusivo farrapo de coisa<br />
que faço melhor que ela, mas eu jamais admitiria isso em voz alta, nem em um milhão de anos.<br />
Nem tive a chance de repousar minha bolsa antes que ela se inclinasse para a frente e agarrasse meu<br />
braço.<br />
— Você acredita? — Ela está contendo um sorriso, e seus olhos parecem um cata-vento de cores —<br />
azul, verde, dourado —, brilhando como sempre fazem quando ela está animada com algo. — Com<br />
certeza, foram os Inválidos. Ao menos é o que todos estão dizendo.<br />
Somos as únicas pessoas no vestiário — todos os times já encerraram suas temporadas —, mas<br />
instintivamente viro a cabeça para os lados quando ela diz aquela palavra.<br />
— Fale baixo.<br />
Ela recua um pouco, jogando o cabelo por cima de um ombro.<br />
— Relaxe. Inspecionei tudo antes. Chequei até as cabines dos banheiros. Estamos sozinhas.<br />
Abro o armário que mantive em meus dez anos na Academia St. Anne. No fundo dele há uma<br />
camada de embalagens de chicletes, bilhetes rasgados e clipes de papel perdidos; por cima, uma pequena<br />
pilha de roupas de corrida, dois pares de tênis, a camisa da equipe de corrida, várias embalagens de<br />
desodorante usadas até a metade, um condicionador e um perfume. Em menos de duas semanas, vou me<br />
formar, e nunca mais verei o interior desse armário, e por um segundo fico triste. É nojento, mas, para<br />
ser sincera, sempre amei o cheiro de vestiários: os produtos industriais de limpeza, o desodorante, as<br />
bolas de futebol e até o cheiro de suor. É reconfortante. É tão estranho como a vida funciona: você quer<br />
alguma coisa e espera por ela, espera, espera, espera, e parece que está demorando uma eternidade para<br />
acontecer. Então, ela acontece, acaba, e tudo o que você quer é voltar àquele instante antes que as coisas<br />
mudassem.<br />
— Quem são “todos”? O noticiário diz que foi apenas um engano, um erro de remessa ou algo<br />
parecido.<br />
Sinto a necessidade de repetir a história oficial, mesmo sabendo tão bem quanto Hana que é uma<br />
bobagem.<br />
Ela se senta com uma perna de cada lado do banco, observando-me. Como sempre, está<br />
completamente alheia ao fato de que detesto que outras pessoas me vejam trocando de roupa.