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01- Delírio

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portas da casa e, então, aumentava o volume da música. Ríamos tanto que eu sempre ia para a cama com<br />

dor na barriga.<br />

Com o tempo, entendi que ela fechava as cortinas em nossas festas de meia para evitar que fôssemos<br />

vistas por patrulhas, e que cobria as frestas das portas com almofadas para que os vizinhos não nos<br />

denunciassem por ouvir música e rir demais, ambos possíveis sintomas do deliria. Entendi que ela<br />

costumava deixar o pingente militar de meu pai — uma adaga prateada que ele herdara do próprio pai e<br />

que ela usava todos os dias no pescoço presa em um cordão — sob a blusa sempre que saíamos de casa,<br />

para que ninguém visse e desconfiasse. Entendi que todos os momentos mais felizes de minha infância<br />

foram uma mentira. Eles foram errados, arriscados e ilegais. Foram esquisitos. Minha mãe era esquisita, e<br />

provavelmente herdei a esquisitice dela.<br />

Pela primeira vez pergunto-me realmente o que ela devia estar sentindo, pensando, na noite em que<br />

caminhou até o penhasco e, então, continuou andando, com os pés pedalando no ar. Pergunto-me se ela<br />

estava com medo. Pergunto-me se pensou em mim ou em Rachel. Pergunto-me se lamentava nos deixar<br />

para trás.<br />

Começo a pensar em meu pai também. Não me lembro de nada dele, embora tenha uma sensação<br />

vaga e antiga de duas mãos ásperas e mornas, e um grande rosto flutuando acima do meu — mas acho<br />

que é só porque minha mãe mantinha em seu quarto um porta-retratos com uma fotografia em que<br />

apareciam meu pai e eu. Eu tinha apenas alguns meses, e ele me segurava, sorrindo, olhando para a<br />

câmera. Mas é impossível que eu me lembre mesmo, de verdade. Eu não tinha nem um ano quando ele<br />

morreu. Câncer.<br />

O calor está horrível, espesso, acumulando-se nas paredes. Jenny está deitada de costas, com braços e<br />

pernas abertos em cima do edredom, respirando em silêncio com a boca escancarada. Até Grace dorme<br />

profundamente, murmurando baixinho no travesseiro. O quarto inteiro está cheirando a exalação<br />

úmida, peles, línguas e leite morno.<br />

Saio da cama cuidadosamente, já de calça jeans escura e camiseta. Nem me dei o trabalho de vestir o<br />

pijama. Sabia que seria incapaz de dormir hoje. E, mais cedo, eu havia tomado uma decisão. Estava à<br />

mesa de jantar com Carol, tio William, Jenny e Grace, vendo todos mastigarem e engolirem em silêncio<br />

e trocarem olhares inexpressivos, com a sensação de que o ar pesava à minha volta e dificultava minha<br />

respiração, como duas mãos apertando cada vez mais um balão de água, quando percebi algo.<br />

Hana disse que aquilo não fazia parte de mim, mas ela estava errada.<br />

Meu coração está batendo com tanta força que posso ouvi-lo, e tenho certeza de que todo mundo<br />

vai ouvir também — e que isso fará minha tia se sentar de repente na cama, pronta para me flagrar e me<br />

acusar de tentar sair às escondidas. O que, é claro, é exatamente o que estou tentando fazer. Eu nem sabia<br />

que um coração podia bater tão alto, o que me faz lembrar um conto de Edgar Allan Poe que tivemos<br />

de ler em uma das aulas de estudos sociais, sobre um cara que mata outro cara e, então, se entrega à<br />

polícia porque está convencido de que pode ouvir o coração do morto batendo sob o assoalho de sua<br />

casa. Supõe-se que seja um conto sobre culpa e os perigos da desobediência civil, mas, quando o li pela<br />

primeira vez, ele me pareceu um pouco bobo e melodramático. Mas agora entendo. Poe deve ter saído<br />

escondido de casa muitas vezes quando era jovem.<br />

Abro cuidadosamente a porta do quarto, prendendo a respiração e rezando para ela não ranger. Em<br />

determinado momento, Jenny solta um grito, e meu coração quase para. Mas então ela rola para o lado,<br />

jogando um dos braços por cima do travesseiro, e expiro lentamente, percebendo que é apenas um sono<br />

agitado.<br />

O corredor está completamente escuro. O quarto onde meus tios dormem também está escuro, e o<br />

único ruído é o sussurro das árvores lá fora e os suaves tiques e rangidos vindos das paredes, barulhos<br />

artríticos comuns de casas velhas. Finalmente, crio coragem para sair ao corredor e fechar a porta do<br />

quarto. Ando tão lentamente que parece que nem estou me movendo, sinto o caminho pelos calombos e

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