01- Delírio

treze
Nos anos que antecederam o aperfeiçoamento da cura, ela só era oferecida como um teste. Os riscos eram enormes. Na época, um
em cada cem pacientes sofria perda fatal das funções cerebrais após a intervenção.
Mesmo assim, as pessoas lotavam os hospitais em números recordes, exigindo a cura; eles acampavam em frente aos
laboratórios durante dias, tentando garantir uma vaga para a intervenção.
Esses anos também são conhecidos como os Anos Milagrosos, devido à quantidade de vidas curadas e tornadas plenas e do
número de almas recuperadas da doença.
E se houve pessoas que morreram na mesa de operação, foi por uma boa causa, e ninguém pode lamentá-las...
— “Os Anos Milagrosos: o começo da ciência da cura”,
Uma breve história dos Estados Unidos da América, E. D.
Thompson, p. 87.
Quando entro em casa está ainda mais quente do que o normal: um muro úmido e sufocante de calor.
Carol deve estar cozinhando. A casa cheira a carne assada e temperos — o que, misturado aos cheiros
normais do verão, de suor e mofo, é um pouco nauseante. Nas últimas semanas temos jantado na
varanda: saladas de macarrão, frios e sanduíches da loja de meu tio.
Carol põe a cabeça para fora da cozinha enquanto passo. Seu rosto está vermelho, e ela está suando
muito. Há manchas escuras de suor nas axilas de sua blusa azul-clara.
— É melhor você trocar de roupa — diz ela. — Rachel e David chegarão a qualquer momento.
Eu tinha me esquecido completamente que minha irmã e o marido viriam para o jantar. Em geral,
vejo Rachel no máximo quatro ou cinco vezes ao ano. Quando eu era mais nova, sobretudo depois que
Rachel saiu da casa de Carol, contava os dias para ela nos visitar. Acho que, na época, eu não entendia
completamente a intervenção e o que aquilo significava para ela, para mim, para nós. Eu sabia que ela
havia sido salva de Thomas e da doença, mas só isso. Achava que, fora isso, todo o resto seria
exatamente igual. Achava que, assim que ela viesse me ver, seria como antigamente, que colocaríamos
nossas meias e faríamos uma festa dançante, ela me colocaria no colo e faria tranças em meu cabelo ou
me contaria uma de suas histórias — sobre lugares distantes e bruxas que podiam se transformar em
animais.
Mas ela apenas passava a mão em minha cabeça ao entrar na casa e aplaudia educadamente quando
Carol me fazia recitar a tabuada.
— Ela é gente grande agora — disse Carol quando perguntei por que Rachel não gostava mais de
brincar. — Um dia você vai entender.
Depois disso, parei de prestar atenção às marcações que apareciam a cada tantos meses no calendário
da cozinha: Visita de R.
Durante o jantar os principais tópicos de conversa são Brian Scharff — o marido de Rachel, David,
trabalha com um amigo do primo de Brian, então David se acha um especialista no tema — e a
Universidade Regional de Portland, onde começarei a estudar no outono. Será a primeira vez em minha
vida em que terei aulas com pessoas do sexo oposto, mas Rachel diz que não preciso me preocupar.
— Não vai nem perceber — diz ela. — Estará ocupada demais com o trabalho e os estudos.
— Há guardas — diz tia Carol. — Todos os estudantes são autenticados. — Código para: Todos os
estudantes são curados.
Penso em Alex e quase digo Nem todos.