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01- Delírio

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nove<br />

Senhor<br />

Preserva nossos corações;<br />

Como preservaste os planetas em suas órbitas<br />

E esfriaste o caos do surgimento...<br />

Como a gravidade de Tua vontade preserva cada estrela de<br />

entrar em colapso,<br />

Preserva o oceano de se tornar pó e o pó de se tornar água,<br />

Preserva os planetas de colisões<br />

E os sóis de explosões...<br />

Então, Senhor, preserva nossos corações<br />

Em órbitas firmes<br />

E ajuda-os a se manter no caminho.<br />

— Salmo 21, “Oração e estudo”, Shhh.<br />

Naquela noite, mesmo quando já estou na cama, as palavras de Hana se repetem incessantemente em<br />

minha cabeça. Você não vai acabar como ela. Isso não faz parte de você. Ela apenas quis me confortar, eu sei —<br />

e isso deveria me tranquilizar —, mas por algum motivo não o faz. Por algum motivo, isso me magoa;<br />

sinto uma dor profunda no peito, como se algo grande, frio e afiado estivesse alojado nele.<br />

Há outra coisa que Hana não entende: pensar na doença, preocupar-me com ela e me estressar com a<br />

possibilidade de eu ter herdado alguma predisposição é tudo o que tenho de minha mãe. A doença é o<br />

que sei dela. É nossa ligação.<br />

Fora isso, não tenho nada.<br />

Não que eu não tenha lembranças dela. Tenho — muitas, considerando quão jovem eu era quando<br />

ela morreu. Lembro-me de que, quando nevava, ela me mandava encher frigideiras com neve fresca.<br />

Quando eu voltava, jogávamos xarope de bordo em cima do gelo e víamos a calda endurecer quase<br />

instantaneamente e se transformar em um doce âmbar, fios açucarados e frágeis, como uma renda<br />

comestível. Lembro-me do quanto ela gostava de cantar para nós enquanto brincava comigo na água da<br />

praia no Eastern Promenade. Na época, eu não sabia quão estranho era isso. Outras mães ensinam seus<br />

filhos a nadar. Outras mães brincam com seus bebês na água, aplicam filtro solar para que eles não se<br />

queimem e fazem tudo o que uma mãe deve fazer, como descrito na seção de Paternidade da Shhh.<br />

Mas elas não cantam.<br />

Lembro que ela me trazia bandejas com torradas passadas na manteiga quando eu ficava doente e<br />

beijava meus machucados quando eu caía, e lembro que certa vez, quando ela me levantou depois que<br />

caí da bicicleta e me embalou nos braços, uma mulher se indignou e disse a ela: Você deveria se envergonhar,<br />

e eu não entendi o motivo, o que me fez chorar ainda mais. Depois disso, ela só me confortava quando<br />

estávamos a sós. Em público, ela apenas franzia a testa e dizia:<br />

— Você está bem, Lena. Levante-se.<br />

E costumávamos fazer festas também. Minha mãe as chamava de “festas de meia”, porque<br />

enrolávamos os tapetes da sala, calçávamos nossas meias mais grossas e escorregávamos e deslizávamos<br />

pelo assoalho de madeira dos corredores. Até Rachel participava, apesar de sempre dizer que estava<br />

grande demais para brincadeiras de criança. Minha mãe fechava as cortinas e enfiava almofadas sob as

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