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01- Delírio

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tudo é racionado, sobretudo gás e eletricidade. Em um momento, perco de vista a posição do sol atrás<br />

dos prédios de quatro e cinco andares, que ficam mais colados um ao outro depois que dobro na rua<br />

Preble: prédios altos, estreitos e escuros grudados como se já estivessem se preparando para o inverno,<br />

aproximando-se para se aquecer. Não parei para pensar no que direi a Alex, e de repente a ideia de ficar<br />

sozinha com ele faz meu estômago se contorcer. Preciso frear minha bicicleta abruptamente, parar e<br />

retomar o fôlego. Meu coração está batendo freneticamente. Após um minuto de descanso, volto a<br />

pedalar, agora mais devagar. Ainda estou a um pouco mais de um quilômetro de distância, mas já posso<br />

ver a enseada à minha direita. O sol já está vacilando acima da massa escura de árvores no horizonte.<br />

Tenho dez minutos, no máximo quinze, até que a escuridão seja total.<br />

Então, outro pensamento quase me faz parar, atingindo-me como um soco: ele não estará lá.<br />

Chegarei tarde demais, ele terá ido embora. Ou isso tudo vai acabar sendo apenas uma grande piada ou<br />

uma pegadinha.<br />

Ponho uma das mãos na barriga, mentalizando para que o ravióli fique quieto, e acelero novamente.<br />

Estou tão ocupada pedalando com um pé após o outro — esquerdo, direito, esquerdo, direito — e<br />

enfrentando um cabo de guerra mental com meu aparelho digestivo que não ouço os reguladores se<br />

aproximando.<br />

Estou prestes a acelerar pelo semáforo há tempos desativado na avenida Baxter quando, de repente,<br />

sou ofuscada por uma fileira de luzes fortes movendo-se: o brilho de mais de dez lanternas está<br />

apontado para meus olhos, de modo que preciso parar de repente, levando uma das mãos ao rosto e<br />

quase caindo por cima do guidom — o que seria um verdadeiro desastre, considerando que, na pressa<br />

para sair de casa, esqueci o capacete.<br />

— Pare. — A voz de um dos reguladores soa como um latido. Deve ser o líder responsável pela<br />

patrulha. — Verificação de identidade.<br />

Grupos de reguladores — tanto de cidadãos voluntários quanto de reguladores oficiais empregados<br />

pelo governo — patrulham as ruas todas as noites, à procura de não curados violando o toque de<br />

recolher e verificando as ruas e (se as cortinas estiverem abertas) as casas em busca de atividades<br />

proibidas, como não curados se tocando ou andando juntos após o pôr do sol — ou até mesmo curados<br />

envolvidos em “atividades que possam sinalizar o ressurgimento do deliria após a intervenção”, como<br />

excesso de abraços e beijos. Isso raramente acontece, mas acontece.<br />

Reguladores respondem diretamente ao governo e têm uma relação muito próxima com os cientistas<br />

nos laboratórios. Eles foram os responsáveis por mandar minha mãe para sua terceira intervenção; uma<br />

patrulha a viu segurando uma fotografia e chorando uma noite, pouco depois de seu segundo<br />

tratamento fracassado. Ela olhava uma foto de meu pai e se esquecera de fechar totalmente as cortinas.<br />

Dias depois, ela estava de volta aos laboratórios.<br />

Em geral, é fácil evitar os reguladores. Dá para ouvi-los a praticamente um quilômetro de distância.<br />

Eles andam com rádios para se coordenar com outras patrulhas, e a interferência estática dos aparelhos<br />

sendo ligados e desligados faz parecer que há um enxame enorme de vespas a caminho. Eu só não estava<br />

prestando atenção. Censurando mentalmente minha burrice, pesco minha carteira no bolso de trás da<br />

calça. Ao menos lembrei-me de trazer isso. É ilegal circular por Portland sem um documento de<br />

identidade. A última coisa que alguém quer é passar uma noite na cadeia enquanto as autoridades<br />

tentam verificar sua validade.<br />

— Magdalena Ella Haloway — digo, tentando manter a voz firme enquanto entrego minha<br />

identidade ao líder dos reguladores. Mal consigo vê-lo por trás da lanterna, que ele mantém direcionada<br />

ao meu rosto, forçando-me a cerrar os olhos. Ele é grande; é tudo o que sei. Alto, magro, ossudo.<br />

— Magdalena Ella Haloway — repete. Gira minha identificação entre os dedos longos e olha meu<br />

código de identidade, um número atribuído a cada cidadão americano. Os três primeiros dígitos<br />

apontam seu estado; os três seguintes, sua cidade; os três seguintes, seu grupo familiar; e os quatro

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