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os olhos, cerrados por causa da claridade. — Você não quer arrumar problemas.<br />
Ele fala de forma descomprometida, mas por um instante penso ouvir algo duro sob suas palavras,<br />
uma corrente de raiva ou agressão. Porém, digo a mim mesma que estou sendo paranoica.<br />
Independentemente do que os reguladores façam, eles existem para nossa proteção, para nosso próprio<br />
bem.<br />
O grupo de reguladores passa por mim, de modo que, por alguns segundos, fico cercada por uma<br />
correnteza de ombros grosseiros e jaquetas de algodão, perfumes estranhos e suor. Os rádios ganham<br />
vida e voltam a desaparecer à minha volta. Capto alguns fragmentos de palavras e transmissões: rua<br />
Market, uma menina e um menino, possivelmente infectados, música não aprovada em St. Lawrence, alguém parece estar<br />
dançando… Braços, peitos e cotovelos esbarram em mim de ambos os lados, até que finalmente o grupo<br />
vai embora e volto a emergir de seu meio, sozinha na rua enquanto os passos dos reguladores ficam cada<br />
vez mais distantes atrás de mim. Espero até não ouvir mais o zumbido dos rádios ou o impacto das<br />
botas no pavimento.<br />
Então, parto, de novo com uma sensação arrebatadora no peito, aquela mesma impressão de<br />
felicidade e liberdade. Não acredito em como foi fácil sair de casa. Eu nunca soube que era capaz de<br />
mentir para minha tia — nunca soube que era capaz de mentir, ponto —, e quando penso que escapei<br />
por um triz de horas de interrogatório pelos reguladores, tenho vontade de dar pulos e socar o ar. Esta<br />
noite o mundo inteiro está a meu favor. E estou a apenas poucos minutos da enseada Back. Meu coração<br />
se acelera quando penso em descer rapidamente pelo gramado da colina íngreme e ver Alex emoldurado,<br />
ao fundo os últimos raios brilhantes do sol — quando penso naquela única palavra suspirada em meu<br />
ouvido. Cinza.<br />
Disparo pela avenida Baxter, que faz várias curvas no último quilômetro até a enseada. E então paro<br />
de repente. Os prédios ficaram para trás, dando lugar a galpões em ruínas, espalhados aqui e ali dos dois<br />
lados da estrada esburacada e decadente. Mais adiante, uma faixa estreita de mato alto desce até a<br />
enseada. A água é um espelho enorme, com uns toques de cor-de-rosa e dourado do céu. Naquele<br />
instante luminoso em que faço a curva, o sol — curvado sobre o horizonte como um arco de ouro<br />
maciço — lança seus últimos raios de luz, destruindo as trevas da água e deixando tudo branco por uma<br />
fração de segundo, e em seguida cai, afundando, arrastando consigo o cor-de-rosa, o vermelho e o roxo<br />
do céu, toda a cor escorrendo instantaneamente e deixando apenas a escuridão.<br />
Alex tinha razão. Era lindo — um dos mais bonitos que já vi.<br />
Por um instante não consigo me mover ou fazer nada além de ficar ali, respirando com força,<br />
olhando fixamente. Em seguida, um torpor se apodera de mim. Cheguei tarde demais. Os reguladores<br />
deviam estar errados em relação ao horário. Já deve passar de oito e meia. Mesmo que Alex decida<br />
esperar por mim em algum lugar da longa curva da enseada, não tenho a menor chance de encontrá-lo e<br />
chegar em casa antes do toque de recolher.<br />
Meus olhos ardem e o mundo diante de mim fica embaçado, embaralhando cores e formas. Por um<br />
segundo penso que devo estar chorando, e fico tão espantada que esqueço tudo — esqueço a decepção e<br />
a frustração, esqueço Alex na praia, o pensamento de seu cabelo refletindo os últimos raios de sol,<br />
reluzindo como cobre. Não consigo me lembrar da última vez em que chorei. Foi há muitos anos. Seco<br />
os olhos com o dorso da mão, e minha visão volta ao normal. É apenas suor, percebo, aliviada; estou<br />
suando, as gotas estão caindo em meus olhos. Mesmo assim, a sensação de enjoo e de embrulho não sai<br />
de meu estômago.<br />
Fico ali por mais alguns minutos, mexendo na bicicleta e apertando o guidom com força até me<br />
acalmar um pouco. Parte de mim quer dizer Que se dane, impulsionar a bicicleta, estender as duas pernas<br />
e voar colina abaixo em direção à água, com o vento batendo no cabelo — dane-se o toque de recolher,<br />
danem-se os reguladores, danem-se todos. Mas não posso; não poderia; jamais poderia. Não tenho<br />
escolha. Preciso ir para casa.