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01- Delírio

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vinte<br />

Ex rememdium salus.<br />

“Da cura, a salvação.”<br />

— Impresso nas moedas e notas americanas.<br />

Por algum milagre devo ter causado uma impressão boa o suficiente em Brian e na Sra. Scharff para<br />

satisfazer Carol, apesar de quase não ter falado pelo restante da visita (ou talvez porque quase não falei).<br />

Eles vão embora no meio da tarde, e embora Carol tenha insistido que eu a ajudasse em mais algumas<br />

tarefas e ficasse para o jantar — cada minuto que não posso correr até Alex é uma agonia, sessenta<br />

segundos de pura tortura —, ela promete que eu posso dar uma volta quando acabar de comer, antes do<br />

toque de recolher. Engulo os feijões cozidos e os nuggets de peixe tão depressa que quase vomito e,<br />

então, fico praticamente quicando na cadeira até minha tia me deixar sair. Sou liberada até da função de<br />

lavar a louça, mas estou brava demais com ela por me ter prendido aqui para sentir gratidão.<br />

Vou, primeiro, à casa trinta e sete na rua Brooks. Não acho realmente que Alex estará lá esperando<br />

por mim, mas torço assim mesmo. Porém, os cômodos estão vazios, e o jardim também. Devo estar<br />

semidelirante a essa altura, porque procuro atrás das árvores e dos arbustos, como se de repente ele fosse<br />

aparecer ali, como fazia algumas semanas atrás em um dos jogos épicos de pique-esconde que nós dois e<br />

Hana fazíamos. Só de pensar nisso sinto uma dor aguda no peito. Há menos de um mês, agosto inteiro<br />

ainda se estendia diante de nós — longo, dourado e reconfortante, como o período infinito de um sono<br />

delicioso.<br />

Bem, agora acordei.<br />

Atravesso novamente a casa. Ver todas as nossas coisas espalhadas pela sala — cobertores, algumas<br />

revistas e livros, uma caixa de biscoitos, algumas latas de refrigerante e jogos de tabuleiro antigos,<br />

inclusive uma partida inacabada de palavras cruzadas, abandonada quando Alex começou a inventar<br />

palavras como locéu e carovo — me deixa arrasadoramente triste e me faz lembrar daquela única casa que<br />

sobreviveu à blitz e daquela rua rachada e bombardeada: um lugar onde todos seguiam estupidamente<br />

com seu dia a dia até o momento do desastre, e depois todo mundo dizia: “Como é que eles não sabiam<br />

o que estava prestes a acontecer?”<br />

Burra, burra — por ser tão descuidada com nosso tempo, por acreditar que ainda tínhamos bastante.<br />

Caminho até a rua, frenética e desesperada agora, mas sem saber ao certo o que fazer em seguida.<br />

Alex certa vez mencionou que morava em Forsyth — uma longa fileira de prédios cinzentos desbotados<br />

da universidade —, então vou para lá. Mas todos os prédios parecem idênticos. Deve haver dezenas<br />

deles, centenas de apartamentos. Quero bater em todas as portas até encontrá-lo, mas isso seria suicídio.<br />

Depois que alguns estudantes me lançam olhares desconfiados — tenho certeza de que pareço um<br />

desastre, com o rosto vermelho, olhos arregalados e praticamente histérica —, entro em uma rua lateral.<br />

Para me acalmar, começo a recitar as preces elementares:<br />

— H é de hidrogênio, um peso de um; quando há fissão, tão brilhante, tão quente é o sol comum...<br />

Estou tão distraída voltando para casa que me perco no emaranhado de ruas que levam para fora do<br />

campus da Universidade de Portland. Chego a uma rua estreita sem saída que nunca vi antes e preciso<br />

voltar até a praça Monument. O Governador está lá, como sempre, com a mão vazia estendida,

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