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01- Delírio

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público. — Só vim entregar uma coisa a Lena, e aí começamos a fofocar.<br />

— Temos clientes — diz Jed, mal-humorado.<br />

— Saio em um segundo — digo, tentando imitar o tom de Hana. O fato de Jed e Alex estarem<br />

separados por apenas alguns centímetros de compensado é assustador.<br />

Jed resmunga e recua, voltando a fechar a porta. Hana, Alex e eu nos olhamos em silêncio. Nós três<br />

exalamos ao mesmo tempo, um suspiro coletivo de alívio.<br />

Quando Alex fala novamente, é um sussurro.<br />

— Trouxe algumas coisas para sua perna — diz ele. Ele coloca a mochila no chão, retirando, em<br />

seguida, água oxigenada, pomada antibactericida, gazes, esparadrapo e bolas de algodão. Ele se ajoelha<br />

diante de mim. — Posso? — diz ele. Dobro a barra da calça, e ele começa a desenrolar as tiras da<br />

camiseta. Não acredito que Hana está ali, vendo um garoto, um Inválido, tocar minha pele. Sei que ela<br />

jamais teria esperado por isso e desvio o olhar, envergonhada e orgulhosa ao mesmo tempo.<br />

Hana inspira de repente quando o curativo improvisado deixa minha perna. Sem querer, fiquei de<br />

olhos bem-fechados o tempo todo.<br />

— Caramba, Lena — diz ela. — Aquele cachorro pegou você com vontade.<br />

— Ela vai ficar bem — diz Alex, e a confiança tranquila em sua voz faz uma onda de calor se<br />

espalhar por todo o meu corpo. Abro um olho e dou uma olhada na panturrilha. Meu estômago se<br />

revira. Parece que um pedaço enorme de minha perna foi arrancado. Alguns centímetros quadrados de<br />

pele simplesmente sumiram.<br />

— Talvez você devesse ir ao hospital — diz Hana, apreensiva.<br />

— E dizer o que a eles? — Alex retira a tampa da água oxigenada e começa a molhar as bolas de<br />

algodão. — Que ela se machucou durante uma batida policial em uma festa clandestina?<br />

Hana não responde. Ela sabe que não posso ir ao médico. Eu seria presa nos laboratórios ou jogada<br />

nas Criptas antes de terminar de falar meu nome.<br />

— Não está doendo tanto assim — digo, o que é mentira.<br />

Hana me lança de novo aquele olhar, como se não nos conhecêssemos, e percebo que ela está de<br />

fato, e possivelmente pela primeira vez, impressionada comigo. Admirada, até.<br />

Alex espalha uma camada espessa de pomada e depois começa uma luta com a gaze e o esparadrapo.<br />

Não preciso perguntar onde conseguiu tantos suprimentos. Outro benefício de ter livre acesso aos<br />

laboratórios, presumo.<br />

Hana se ajoelha.<br />

— Você está fazendo errado — diz ela, e é um alívio ouvir seu tom normal e mandão. Quase rio. —<br />

Minha prima é enfermeira. Eu faço.<br />

Ela praticamente tira Alex do caminho com uma cotovelada. Ele se afasta e levanta as mãos, em<br />

rendição.<br />

— Sim, senhora — diz ele, piscando para mim.<br />

E então começo a rir. Sou tomada por acessos de risada e preciso cobrir a boca com as mãos para<br />

não gritar ou ofegar e nos denunciar. Por um instante Hana e Alex simplesmente me encaram,<br />

espantados, mas em seguida olham-se e abrem um sorriso bobo.<br />

Sei que estamos pensando a mesma coisa.<br />

É uma loucura. É uma besteira. É perigoso. Mas de algum jeito, estar nesse depósito abafado,<br />

cercados por caixas de macarrão com queijo, latas de beterraba e talco de bebê, faz de nós um time.<br />

Somos nós contra eles, três contra muitos milhares. Mas, por algum motivo, e apesar de ser absurdo,<br />

naquele instante me sinto muito bem em relação às nossas chances.

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