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01- Delírio

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— Eu não disse que nos conhecemos. — Ele não tenta se aproximar de novo de mim e fico grata, pelo<br />

menos, por isso. Ele morde o canto de um dos lábios, um gesto que o faz parecer mais novo. — Deixeme<br />

fazer uma pergunta — continua ele. — Por que você não corre mais pelo Governador?<br />

Sem querer, engasgo um pouco.<br />

— Como você sabe do Governador?<br />

— Faço aulas na UP — diz ele. Universidade de Portland; agora me lembro de ter ouvido alguns<br />

fragmentos de conversa na tarde em que caminhamos até os fundos do complexo de laboratórios para<br />

ver o mar. Ele de fato disse que era estudante. — Trabalhei na Grind no semestre passado, na praça<br />

Monument. Eu via você o tempo todo.<br />

Minha boca abre e fecha. Nenhuma palavra sai; meu cérebro sempre trava quando mais preciso dele.<br />

É claro que conheço a Grind; Hana e eu corríamos por ali duas ou três vezes por semana, vendo os<br />

universitários entrarem e saírem da cafeteria como flocos de neve ao vento, soprando a fumaça de cima<br />

de seus copos. A Grind dá para uma pequena praça, toda calçada com pedrinhas, chamada Monument:<br />

ela marcava a metade de uma das rotas de dez quilômetros que eu costumava correr sempre.<br />

No centro dela há a estátua de um homem parcialmente erodida pela neve e pelo clima, e um pouco<br />

pichada. Ele está andando para a frente, segurando o chapéu na cabeça com uma das mãos, parecendo<br />

caminhar por uma tempestade terrível, ou contra uma ventania. Sua outra mão está estendida para a<br />

frente. É óbvio que no passado distante ele segurava alguma coisa — provavelmente uma tocha —, mas<br />

em algum momento esse pedaço da estátua foi quebrado ou roubado. Então, agora, o Governador<br />

avança com a mão vazia, onde há um buraco circular, um esconderijo perfeito para bilhetes e coisas<br />

secretas. Hana e eu verificávamos sua mão às vezes para ver se havia algo legal ali dentro. Mas nunca<br />

encontrávamos — apenas alguns pedaços de chiclete grudado e algumas moedas.<br />

Não sei exatamente quando Hana e eu começamos a chamá-lo de Governador ou por quê. O vento<br />

e a chuva deixaram a placa na base da estátua indecifrável. Mais ninguém o chama assim. As outras<br />

pessoas simplesmente dizem “a estátua na Monument Square”. Alex deve ter nos ouvido falando sobre<br />

o Governador algum dia.<br />

Ele continua olhando para mim, à espera, e eu percebo que não respondi à sua pergunta.<br />

— Preciso mudar minhas rotas — digo. Provavelmente, não passo pelo Governador desde março ou<br />

abril. — Enjoa. — E depois, porque não consigo evitar, pergunto com um tom estridente: — Você se<br />

lembra de mim?<br />

Ele ri.<br />

— Era bem difícil não reparar em você. Ficava correndo ao redor da estátua e dando uns pulinhos e<br />

gritinhos.<br />

Um calor sobe por meu pescoço e minhas bochechas. Devo estar completamente vermelha e<br />

agradeço a Deus por estarmos num ponto distante das luzes do palco. Esqueci completamente que eu<br />

pulava e tentava bater na mão do Governador quando Hana e eu corríamos por ali, uma maneira de me<br />

animar para a corrida de volta até a escola. Às vezes, até gritávamos “Halena!”. Devíamos parecer<br />

completamente loucas.<br />

— Eu não... — Lambo meus lábios, à procura de uma explicação que não soe ridícula. — Às vezes<br />

fazemos coisas estranhas quando corremos. Por causa das endorfinas e tudo mais. É como uma droga,<br />

sabe? Mexe com o cérebro.<br />

— Eu gostava — diz ele. — Você parecia... — Ele hesita por um instante. Seu rosto se contrai<br />

levemente, uma mudança singela que mal percebo na penumbra, mas naquele segundo ele parece tão<br />

imóvel e triste que quase perco o fôlego, como se ele fosse uma estátua ou uma pessoa diferente. Temo<br />

que ele não conclua a frase, mas, então, ele diz: — Você parecia feliz.<br />

Por um momento ficamos ali parados, em silêncio. E então, de repente, Alex está de volta, tranquilo<br />

e sorridente.

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