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01- Delírio

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dezenove<br />

Viver livre ou morrer.<br />

— Antigo ditado, origem desconhecida, listado na<br />

Compilação Abrangente de Palavras e Ideias Perigosas,<br />

www.capip.gov.org.<br />

Uma das coisas mais estranhas a respeito da vida é que ela continua, cega e inconsciente, mesmo<br />

enquanto mundos particulares — pequenas esferas — estão girando e se transformando, até mesmo se<br />

desfazendo. Um dia, você tem pais; no dia seguinte, é órfão. Um dia, você tem um lugar e um caminho.<br />

No dia seguinte, está perdido em uma selva.<br />

E, ainda assim, o sol nasce, as nuvens se acumulam e flutuam, as pessoas fazem compras, dão<br />

descarga, abrem e fecham cortinas. É quando você percebe que a maior parte das coisas — a vida, o<br />

implacável mecanismo da existência — não gira em torno de você. Sequer o inclui. Ela seguirá em frente<br />

mesmo depois de você pular de um abismo. Mesmo depois de você morrer.<br />

Quando caminho para o centro de Portland pela manhã, é isso o que mais me surpreende — quão<br />

normal tudo parece. Não sei o que eu estava esperando. Não achei realmente que os prédios cairiam<br />

durante a noite e que as ruas se derreteriam formando montes de borracha, mas, mesmo assim, é um<br />

choque ver um rio de pessoas carregando maletas, comerciantes abrindo suas lojas e um carro solitário<br />

tentando passar por uma rua lotada.<br />

Parece absurdo que eles não saibam, que não tenham sentido nenhuma mudança ou tremor enquanto<br />

minha vida virou de ponta-cabeça. Voltando para casa, sinto-me paranoica, como se alguém pudesse<br />

identificar o cheiro da Selva em mim ou pudesse perceber, só de olhar para meu rosto, que atravessei a<br />

fronteira. Minha nuca coça como se estivesse sendo cutucada por galhos, e não paro de puxar a mochila<br />

para conferir se há folhas ou qualquer coisa agarrada nela — não que isso seja importante, pois há<br />

árvores em Portland. Mas ninguém nem mesmo olha para mim. É pouco antes das nove horas, e a<br />

maioria das pessoas está se apressando para não chegar atrasada ao trabalho. Um borrão infinito de<br />

pessoas normais, seguindo rotinas normais, olhando para a frente sem prestar atenção à menina baixinha<br />

e comum que passa por eles carregando uma mochila pesada.<br />

A menina baixinha e comum que guarda dentro de si um segredo ardente como fogo.<br />

É como se minha noite na Selva tivesse apurado minha visão. Apesar de tudo parecer o mesmo na<br />

superfície, de alguma forma parece diferente — inconsistente, quase como se eu pudesse passar a mão<br />

através dos prédios, do céu e até mesmo das pessoas. Lembro-me de quando era muito nova e observei<br />

Rachel construir um castelo de areia na praia. Ela deve ter trabalhado nele durante horas, utilizando<br />

copos e potes diferentes para moldar as torres. Quando ficou pronto, estava perfeito, como se tivesse<br />

sido feito de pedra. Mas, quando a maré subiu, bastaram duas ou três ondas para derrubá-lo por<br />

completo. Lembro-me de que fiquei aos prantos, e minha mãe comprou um sorvete para mim e me fez<br />

dividi-lo com Rachel.<br />

É assim que Portland parece hoje de manhã: algo que corre o risco de se dissolver.<br />

Fico pensando no que Alex sempre diz: Há mais de nós do que você imagina. Dou uma olhada discreta<br />

em todos que passam, pensando que talvez eu consiga perceber algum sinal secreto em seu rosto, alguma

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