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01- Delírio

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clareza...<br />

— Eu estou pensando com clareza. — Levanto-me, para não parecer tão indefesa. Estou com raiva<br />

de Alex também, mesmo sabendo que a culpa não é dele. Mas a fúria chicoteia dentro de mim,<br />

descontrolada, ganhando força. — Não posso ficar aqui, Alex. Não mais. Não depois... não depois<br />

daquilo. — Sinto espasmos na garganta enquanto engulo novamente o grito. — Eles sabiam, Alex. Eles<br />

sabiam e nunca me contaram.<br />

Ele também se levanta — lentamente, como se sentisse dor.<br />

— Você não tem certeza disso — diz ele.<br />

— Eu tenho — insisto, e é verdade.<br />

Eu tenho certeza, dentro de mim. Penso em minha mãe inclinada acima de mim, na brancura pálida<br />

e flutuante de seu rosto interrompendo meu sono, em sua voz — Eu amo você. Lembre-se disso. Eles não<br />

podem nos tirar isso — cantada muito baixinho em meu ouvido, no triste sorrisinho dançando em seus<br />

lábios. Ela também sabia. Sabia que viriam buscá-la e que a levariam para aquele lugar horrível. E,<br />

apenas uma semana depois, sentei-me, com um vestido preto que provocava coceira, diante de um caixão<br />

vazio, com um monte de cascas de laranja para chupar, tentando conter as lágrimas enquanto todos em<br />

quem eu acreditava construíam a meu redor uma superfície sólida e lisa de mentiras (“Ela era doente”;<br />

“É isso o que a doença faz”; “Suicídio”). Eu fui enterrada naquele dia.<br />

— Não posso ir para casa, e não vou — continuo. — Vou com você. Podemos fazer nossa casa na<br />

Selva. Outras pessoas fazem isso, não é? Outras pessoas fizeram. Minha mãe... — Quero dizer Minha mãe<br />

vai fazer, mas minha voz falha com a palavra.<br />

Alex me observa atentamente.<br />

— Lena, se fugirmos, se realmente fugirmos, não será como é para mim agora. Você entende isso,<br />

certo? Não vai poder ir e voltar. Nunca poderá voltar. Seu número será invalidado. Todo mundo saberá<br />

que você é uma resistente. Todo mundo vai procurá-la. Se alguém encontrar você... Se algum dia você<br />

for capturada... — Alex não conclui a frase.<br />

— Não me importo — retruco. Não consigo mais controlar minha irritação. — Foi você quem<br />

sugeriu, não foi? E então? Agora que estou pronta você volta atrás?<br />

— Só estou tentando...<br />

Interrompo Alex de novo, falando rápido, no embalo da raiva, do desejo de rasgar, machucar e<br />

destruir.<br />

— Você é igualzinho a todos os outros. É tão ruim quanto eles. Fala, fala, fala... É tão fácil para<br />

vocês. Mas quando chega a hora de fazer algo, quando é hora de me ajudar...<br />

— Estou tentando ajudar — diz Alex, com uma voz firme. — É muito sério. Você entende isso? É<br />

uma decisão importante, você está irritada e não sabe o que está dizendo. — Ele também está se<br />

irritando. Seu tom faz algo doloroso correr por mim, mas eu não consigo parar de falar. Destruir,<br />

destruir, destruir: quero quebrar tudo; Alex, a mim, a nós, a cidade inteira, o mundo inteiro.<br />

— Não me trate como se eu fosse uma criança — digo.<br />

— Então pare de agir como uma — responde ele imediatamente. Percebo que Alex se arrepende<br />

assim que as palavras saem de sua boca. Ele se afasta um pouco, respira e então diz, em tom de voz<br />

normal: — Ouça, Lena. Sinto muito. Sei que você teve... Quer dizer, com tudo o que aconteceu hoje...<br />

Não posso imaginar o que você está sentindo.<br />

É tarde demais. Lágrimas começam a borrar minha visão. Viro-me para o lado e começo a arranhar<br />

o muro. Arranco um pedacinho minúsculo de tijolo. Vê-lo caindo me faz lembrar minha mãe e aquelas<br />

paredes estranhas e assustadoras, e as lágrimas vêm mais depressa.<br />

— Se você se importasse comigo, me levaria embora daqui — digo. — Se você realmente se<br />

importasse comigo, me levaria agora mesmo.<br />

— Eu me importo com você — diz Alex.

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