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01- Delírio

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— Você quer dizer que ela não funcionou? — digo. Meu corpo está formigando, ficando dormente,<br />

e percebo quão frio está. — Você passou pela intervenção e não deu certo, como aconteceu com minha<br />

mãe?<br />

— Não, Lena. Eu... — Ele desvia o olhar, estreitando os olhos, e fala muito baixinho: — Não sei<br />

como explicar.<br />

Tudo, desde as pontas de meus dedos até as raízes dos cabelos, parece coberto de gelo. Imagens<br />

desconexas correm por minha cabeça, um rolo de filme cheio de saltos: Alex na galeria de observação,<br />

seus cabelos como uma coroa de folhas; ele virando a cabeça e mostrando a clara cicatriz de três pontas<br />

abaixo da orelha esquerda; ele me alcançando e dizendo Sou seguro. Não posso machucá-la. As palavras<br />

começam a sair em uma enxurrada novamente, mas eu não as sinto, mal sinto qualquer coisa.<br />

— A intervenção não deu certo e você tem mentido a respeito. Tem mentido para que pudesse<br />

continuar estudando, ter um trabalho, ser pareado e tudo mais. Mas, na verdade, você não está... Você<br />

continua... Ainda pode estar... — Não consigo pronunciar a palavra. Doente. Não curado. Com o mal.<br />

Tenho a sensação de que eu vou passar mal.<br />

— Não. — A voz de Alex é tão alta que me espanta. Dou um passo para trás, os pés deslizando no<br />

chão escorregadio e irregular, e quase afundo, mas quando Alex faz um movimento para me tocar,<br />

afasto-me de seu alcance. Algo enrijece em seu rosto, como se ele tivesse tomado uma decisão. — Estou<br />

dizendo que nunca fui curado. Nunca fui pareado, atribuído nem nada do tipo. Nem ao menos fui<br />

avaliado.<br />

— Impossível. — A palavra mal consegue sair, parece um sussurro. O céu gira acima de mim, cheio<br />

de tons azuis, cor-de-rosa e vermelhos até parecer que partes dele estão sangrando. — Impossível. Você<br />

tem as cicatrizes.<br />

— Cicatrizes — corrige, um pouco mais gentilmente. — Apenas cicatrizes. Não as cicatrizes. —<br />

Então, ele desvia o olhar, permitindo que eu veja seu pescoço. — Três pequenas cicatrizes, um triângulo<br />

invertido. Fácil de reproduzir. Com um bisturi, um canivete ou qualquer objeto.<br />

Fecho os olhos outra vez. As ondas crescem à nossa volta, e o movimento, o subir e descer, me<br />

convence de que realmente vou vomitar, bem aqui na água. Engulo seco, tentando conter a conclusão no<br />

fundo de minha mente que ameaça me dominar, lutando contra a sensação de afogamento. Abro os<br />

olhos e falo, com a voz rouca:<br />

— Como...?<br />

— Você precisa entender. Lena, estou confiando em você. Entende isso? — Ele me encara tão<br />

intensamente que é como se seu olhar me tocasse, e mantenho meus olhos desviados. — Não tive a<br />

intenção... Eu não queria mentir para você.<br />

— Como? — repito, mais alto dessa vez.<br />

De alguma forma meu cérebro fica preso na palavra mentir e entra em um loop infinito: Não há como<br />

evitar as avaliações, a não ser mentindo. Não há como evitar a intervenção, a não ser mentindo. É preciso mentir.<br />

Por um instante Alex se cala, e eu penso que ele vai se acovardar e se recusar a me dizer qualquer<br />

coisa. Quase desejo que o faça. Estou desesperada para voltar no tempo até o momento antes de ele<br />

pronunciar meu nome naquele tom estranho, até a sensação intensa e triunfante de chegar antes às boias.<br />

Apostaremos corrida novamente até a praia. Nós nos encontraremos amanhã e tentaremos conseguir<br />

caranguejos frescos com pescadores na doca.<br />

Mas então ele fala.<br />

— Não sou daqui — diz ele. — Quer dizer, não nasci em Portland. Não exatamente.<br />

Ele fala naquele tom de voz que todos usam quando estão prestes a acabar com alguém. Suave —<br />

gentil, até —, como se pudessem melhorar a notícia ao falar em um tom musical. Sinto muito, Lena, mas<br />

sua mãe era uma mulher perturbada. Como se, de algum jeito, você não fosse ouvir a violência subentendida.<br />

— De onde você é?

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