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01- Delírio

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A batida avançou.<br />

Vou rapidamente na direção de Deering Highlands. Tenho medo demais de usar a bicicleta. Tenho<br />

medo de que os pequenos reflexos nas rodas chamem muita atenção. Não consigo pensar no que estou<br />

fazendo, não consigo pensar nas consequências caso eu seja pega. Nem sei de onde tirei essa onda de<br />

certeza. Jamais pensei que pudesse ter a coragem de deixar a casa em uma noite de batida.<br />

Acho que Hana estava errada a meu respeito. Acho que não tenho medo o tempo todo.<br />

Passo por um saco preto de lixo em uma calçada quando um lamento baixo me deixa paralisada.<br />

Viro-me, todo o meu corpo imediatamente alerta. Nada. O som se repete: um barulho sombrio e sutil<br />

que faz os pelos em meus braços se arrepiarem. Então o saco de lixo perto de meus pés balança.<br />

Não. Não é um saco de lixo. É Riley, o vira-lata preto dos Richardson.<br />

Dou alguns passos trêmulos na direção dele. Só preciso de um olhar para saber que ele está<br />

morrendo. Está completamente coberto por uma substância grudenta, brilhante e negra — sangue,<br />

percebo ao me aproximar. Por isso confundi seu pelo, no escuro, com a superfície brilhante de um saco<br />

plástico. Um de seus olhos está repousado na calçada; o outro está aberto. Ele foi golpeado na cabeça. O<br />

sangue escorre em profusão de seu nariz, preto e viscoso.<br />

Penso na voz que ouvi — provavelmente tem pulgas, mesmo, disse o regulador — e no baque súbito que<br />

se seguiu.<br />

Riley está me encarando com um olhar tão pesaroso e acusatório que por um segundo juro que ele é<br />

humano e está tentando me dizer algo — tentando me dizer: Você fez isso comigo. Uma onda de náusea me<br />

domina, e fico tentada a ajoelhar e pegá-lo no colo ou tirar minhas roupas e começar a limpar o sangue<br />

dele. Mas ao mesmo tempo me sinto paralisada. Não consigo me mexer.<br />

Enquanto estou ali, imóvel, ele faz um gesto trêmulo e demorado, da ponta do rabo ao focinho. E<br />

então fica inerte.<br />

Na mesma hora meus braços e minhas pernas se desimobilizam. Dou alguns passos vacilantes para<br />

trás, sentindo bile subir até minha boca. Faço um giro completo, com a mesma sensação de quando<br />

fiquei bêbada com Hana, totalmente sem controle sobre o meu corpo. Raiva e nojo me dilaceram e me<br />

dão vontade de gritar.<br />

Encontro uma caixa de papelão desmontada atrás de uma caçamba de lixo e a arrasto até o corpo de<br />

Riley, cobrindo-o completamente. Tento não pensar nos insetos que o terão invadido até o amanhecer.<br />

Fico surpresa ao sentir lágrimas se formando em meus olhos. Limpo-as com as costas do braço. Mas,<br />

enquanto parto em direção a Deering Highlands, só consigo pensar: Desculpe-me, desculpe-me, desculpe-me,<br />

como um mantra, ou uma oração.<br />

* * *<br />

Uma vantagem das batidas: são barulhentas. Tudo o que preciso fazer é parar nas sombras e ficar atenta<br />

a passos, ruídos de estática e vozes no megafone. Mudo de direção e procuro ruas secundárias, as que<br />

foram ignoradas ou já foram revistadas. Há evidências das batidas por todos os lados: latas e caçambas<br />

de lixo derrubadas, lixo remexido e espalhado pelas ruas, montes de papéis velhos, cartas rasgadas,<br />

legumes podres e sujeiras fedorentas que nem quero identificar, avisos vermelhos cobrindo tudo como<br />

poeira. Meus sapatos ficam escorregadios após pisar nisso tudo, e nos piores lugares preciso ficar de<br />

braços abertos como uma equilibrista só para conseguir permanecer de pé. Passo por algumas casas<br />

marcadas com um grande X e com tinta escura jogada nas paredes e janelas, parecendo cortes<br />

profundos, e sinto um aperto no estômago. As pessoas que moram nessas casas foram identificadas<br />

como encrenqueiras ou resistentes. O vento quente assobiando pelas ruas carrega sons de gritos, choro e

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