Mais um dia começou. Era o quarto desde que começaram as análises de sangue e o acompanhamentode funções cognitivas. Tudo avançava bastante rápido. Não sabiam exatamente quantotempo mais ela haveria de ter, afinal estava sofrendo de envelhecimento precoce. O doutor culpavaas células idosas da doadora, que ria. Delina era jovem ainda, mas para os padrões de um ser tãodiminuto quanto o que tinham diante de si, realmente deveria ser como Matusalém. Deram-lhenome e sobrenome: Marta Cepo, porque tinha o tamanho de um metacarpo ao nascer. O doutorHerwern tinha essa mania de colocar nomes estranhos em suas criações, ligados à espécies ou aotamanho, e se não fosse pela assistente provavelmente a pequena se chamaria “Metacarpa” ou algopior. A “criança” já conseguia se comunicar através de sons ritmados e movimentos, era bastanteinteligente e tinha aparência bem próxima da humana. Não duvidavam de que talvez em breve atécomeçasse a falar. Nenhum dos dois admitia, mas no fundo era o que esperavam.— Bom dia, mamãe.A voz fina soou no amplificador. Era o sétimo dia desde seu nascimento, e Marta já dominavaquase completamente a habilidade da fala. Nada em seu organismo podia explicar aquilo, era comose seu corpo se adaptasse e evoluísse conforme as necessidades em uma velocidade estrondosa.Obviamente ainda não tinha maestria, mas talvez em um par de dias fosse capaz de falar melhorque um doutorando, o que causava ainda mais curiosidade em seus criadores. Por isso, assim quedescobriram que ela conseguia imitar sons semelhantes a palavras, colocaram um minúsculo microfonepreso a todas suas roupas e ligado a um potente sistema de som, para que pudessem ouviro que ela dizia com perfeição. Infelizmente não possuíam o ouvido tão aguçado, como o de umcão, por exemplo, a ponto de ouvir com clareza sons baixos.— Olá, querida. Como dormiu? — a moça sorria para aquela que já parecia a miniaturaperfeita de uma criança de seis ou sete anos.— Já pedi que não deixe ela te chamar assim. — Herwern parecia mais mal-humorado queo comum.— Ela vê TV no meu celular, me ouve falando com meus pais... Eu sou o mais próximo deuma mãe que ela tem, e não vejo nada de mal. Além disso, socializar é algo importante para nossapesquisa, temos de saber como ela se comporta em um ambiente familiar, isso faz toda a diferençapara um ser humano...— Isto não é um ser humano — interrompeu o cientista. Ela odiava essa mania dele de cortarseu pensamento tão bruscamente. Ainda mais quando era para falar algo assim. — Ela é umaquimera, como todos os outros. A diferença é que por alguma razão ela evolui de forma diferente eparece mais humana, só isso, mas não sabemos até quando.O sorriso sumiu do rosto de ambas. O choque de realidade matinal era sempre a pior parte.Por sorte só ocorria a cada dois dias, quando o cientista aparecia. Como de costume, Marta sebanhou e colocou o avental que Delina costurara para ela, imitando os de hospitais. Após os exa-106TATIANA RUIZ
mes foi ao armário improvisado no canto de sua jaula — apesar de não ser como as outras, tinha dedormir e viver igual — e escolheu um bonito vestido de primavera, comprado em uma loja debrinquedos. Estava realmente muito fofa, o tipo de boneca que se tem vontade de colocar numaprateleira com vigilância para ninguém roubar.— Os testes estão todos limpos — informou Delina. Sua voz mostrava o desagrado a respeitodo modo como estava sendo tratada desde que o experimento dera frutos. Não sabia se ele haviapercebido algo ou se apenas tivera um ataque de consciência, mas viu a feição do homem mudar deraiva a derrota e desespero. Quase teve pena dele.—Eles estão cada vez mais perto — confidenciou o cientista — e temo que todos os nossosesforços sejam inúteis.— Eles quem? — Delina recebeu um olhar em resposta. — Se não me contar, não vou poderte ajudar — ela continuou, sob o olhar curioso daquele que pela primeira vez reparava na mocinhada prancheta.— Eles... A máfia da ciência... Aqueles que querem a guerra entre os homens... As pessoaspara quem trabalho — disse por fim, em um suspiro.Delina se deixou cair sentada em uma cadeira. O que ele havia dito? “As pessoas para quemtrabalho”? Como assim? Para quem trabalhava? Como se lesse seus pensamentos, seu chefe começou acontar tudo. O início de suas pesquisas, o total fracasso, o quase impedimento de suas funções por partedo conselho nacional, como conhecera O Homem — chamava assim o patrocinador de suas insanidades— e como se tornara famoso da noite para o dia, fazendo palestras ao redor do mundo sobre seustemas favoritos. Para que mentir e esconder? Nada mais importava agora que queriam descobrir ondeera seu laboratório secreto e repassar a pesquisa a alguém mais jovem, ambicioso e disposto a todo tipode vileza do que ele. Seus contratantes queriam criar seres inteligentes, fortes, ágeis, que combinassemo melhor de cada espécie, mas cuja aparência fosse a mais humana possível, e utilizá-los como armasem guerras ou moedas de troca entre países aliados. Fonte de poder... Esse era o resumo de tudo. Aquilosobre evolução da ciência, descoberta de curas e alternativas para transplantes, o papo todo sobre salvarvidas, não passava de mentiras bonitas para enganá-lo e convencê-lo a prosseguir. Tinha cometido omaior erro de sua vida ao levar fotos de seu mais recente trabalho: a diminuta senhorita Cepo.— Eles queriam que eu criasse outros como ela, em tamanho humano e força física maior. Eulhes disse que ainda não tinha dominado a técnica, e ela era uma exceção. Expliquei que ainda nãotivera tempo de fazer os testes necessários em seus órgãos, saber se podem ser transplantados ou seainda temos muito pela frente, e me disseram que nada disso importava. Como, nada disso importava?Foi justamente o motivo que me trouxe a esse lugar!— Fica calmo. Vai ficar tudo bem, você vai ver.— Não há como ficar calmo. — Afastou-se, passando a mão pelos cabelos grisalhos e depoispelo rosto repleto de barba por fazer. — Eles sempre conseguem o que querem.— Então nós faremos com que dessa vez seja diferente. — Os dois olharam para trás, de ondevinha a voz miúda. Era Marta, com ar decidido.A PEQUENA MARTA CEPO107
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