Tânia e Gaspar se aproximaram. O prisioneiro estava deitado de barriga para baixo. Eleusava estranhas roupas largas, semelhantes a um pijama. Mas o tecido era mais grosso e rústico.Tinha cabelos negros e crespos, que iam até a metade das costas. O aperto das roupas sobre o corpodenunciava uma extrema magreza.Gaspar virou o prisioneiro com brutalidade, chutando-o. Ele tinha pele morena, seu rosto erasulcado e o nariz, adunco. Os lábios arroxeados eram finos e secos, os olhos negros se alojavam emórbitas profundas, margeadas por olheiras muito escuras e sobrancelhas negras e densas.— Parece um maldito mulçumano! — disse Gaspar, com desprezo.Tânia ainda pensou na ignorância do colega, de não saber distinguir a religião da etnia, antesde notar a estranha alteração nos olhos do prisioneiro. Eles pareceram crescer, as pupilas negrastornaram-se profundas como abismos. Não podia mais discernir nenhum detalhe daquele rosto,nem de nada mais. Conseguia apenas prestar atenção nos olhos, sem poder desviar deles. Sementender por quê, seus braços penderam de cada lado do seu corpo, fazendo o controle da rede decontenção cair. Sentiu um grande desânimo, teve vontade de se deixar tombar no chão, mas nãotinha mais controle sobre a própria vontade.— O que foi? — perguntou Gaspar.“Mate-o.” Ouviu na mente um comando, uma voz sem timbre ou sentimento. Num movimentorápido, ela sacou a faca que trazia presa ao antebraço.— Calma aí! Você vai furar ele? — perguntou Gaspar, dando um passo na direção dela.Mas não havia como ele imaginar. Tânia ergueu a faca e o golpeou no ombro, rente a clavícula,onde o colete-couraça era mais fraco. Ele gritou de dor e surpresa. Ela ergueu o braço esquerdodele e deu mais um forte golpe sob a axila, onde a couraça era aberta. Gaspar caiu de joelhos.Ela o prendeu entre as pernas e, agarrando o capacete pela parte de trás, forçou-o para frenteexibindo a nuca. Levantou bem alto a faca e deu um golpe com toda a força. Gaspar caiu, gemendobaixinho, esvaindo-se em sangue.“Liberte-me.” Novamente o comando em sua mente. Pegou o controle e liberou a armadilha.Ela ouviu uma sequência de estalos elásticos enquanto a rede se rompia. O prisioneiro sentou-se,esfregando os músculos para recuperar os movimentos. Então se levantou, alongou os membros,depois olhou para ela. Os olhos haviam voltado a ser como antes, porém ela continuava inerte, sempoder se mover. Ele a examinou de cima a baixo e depois falou:— Livre-se dessa armadura e dessas geringonças odiosas.Sua voz era serena, eivada de um sotaque que ela não conhecia. Não era um sotaque daslínguas próximas ao árabe, que ela esperava dado o biotipo dele. E o comando era irrecusável.Livrou-se da armadura e de todo o equipamento. Sentiu pudor frente ao estranho, pois por baixovestia apenas calcinha e uma camiseta justa e sem mangas, que deixava ver o contorno dos seusseios bem formados, os mamilos proeminentes. Tinha consciência de que seu corpo era belo e queconstantemente atraía o interesse dos homens. Mas a expressão do estranho não se alterou frente asua quase nudez. Ele se aproximou, fitou profundamente seus olhos e a segurou pelos braços. Oseu toque era duro e áspero como o de velhos galhos de árvore.-— Você virá comigo — ele falou.Imediatamente o ambiente ao redor começou a se turvar e escurecer. Ela reconheceu o processode aceleração temporal, mas não entendeu como o estranho conseguia levá-la consigo ape-80UBIRATAN PELETEIRO
nas pelo toque. Ele poderia ter um cinturão de transporte individual sob a camisa larga, mas precisariacingir a cintura dela com outro cinturão para que ambos se deslocassem. Por certo deveria serde uma tecnologia inusitada para ter esse poder.— Não preciso de nada disso — falou o estranho, como se lesse seus pensamentos. — Amim, basta a força do meu espírito e a benção do Senhor.A escuridão total os cercou. Ela tentou engolir em seco, mas nem para isso tinha liberdadefrente à dominação exercida pelo estranho. Tudo que podia fazer era temer o destino quelhe esperava.— Eu permito que você fale — disse o estranho.No mesmo instante sentiu que recuperava o controle sobre sua faculdade de falar. Imediatamentedisse:— Quem... quem é você?— Pode me chamar de Melke, já que os laicos como você apreciam apelidos.— Melke? E o que quer de mim?— Eu não quero nada com nenhum indivíduo. Minhas intenções são com todos os homens,ou melhor, com a alma deles. Você e aquele outro guerreiro é que tentaram me aprisionar, sem queeu tenha feito nada contra vocês.— Você me fez matar meu parceiro, seu desgraçado!— Era apenas um, muito pouco frente à obra que devo realizar. Levei muito tempo paracompreender o último mistério, agora posso voltar no tempo e corrigir os erros.— Que erros?— Você não pode entender. A verdadeira fé está perdida. Mas está escrito que eu deveriaaguardar meu substituto, que será o Salvador. Surgiram, porém, tantos falsos profetas que o Senhordesistiu da mensagem, desistiu da humanidade. Como dizem as escrituras, o Senhor se arrependeu.Mas agora eu vou acertar tudo, eliminando todos eles, todos os falsos profetas.— Mas é um crime gravíssimo interferir no passado, ainda mais matando personagenshistóricos.— A mim só importa a Lei do Senhor. Assim como ele, devo escrever certo por linhas tortas.— Mas por que está me levando então?— Camuflagem. Já que vocês podem ver meus passos nas areias do tempo, quando eu chegarao meu destino vou te arremessar no abismo do passado. Você vai continuar sozinha nossa viagem,navegando eternamente até a inexistência. Seus amigos não perceberão minha ausência. Mas talvezeles tentem te interceptar, quem sabe? Como você e seu amigo tentaram fazer. Isso se o senhorse apiedar de ti.Tânia tinha certeza de que isso não iria acontecer. Lembrou-se de que o operador havia ditoque achara o sinal por acaso. A possibilidade de alguém encontrar o sinal era remota. Ninguémviria resgatá-la e ela ficaria aprisionada naquele deslocamento temporal até morrer de inanição.Começou a tentar imaginar uma saída para se livrar desse destino terrível.Mas então viu uma mudança na expressão pétrea do estranho. Ele começou a virar o rostopara os lados, assustado, como se procurasse alguma coisa.TÂNIA E O TEMPO81
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Ex libris, de Anne Fadiman: uma col