Ela o olhava descrente, as lágrimas querendo lavar o rosto. Aquilo não podia ser verdade.Todos a fitavam com interesse e medo. Prestou mais atenção e notou que havia pássaros com patasno lugar de asas, cães e gatos com asas atrofiadas e até um rato com algo semelhante a nadadeirasem suas extremidades inferiores. Todos, sem exceção, tinham o olhar triste e ferido de quem jásofreu demais. Quanta dor eles não tinham passado... Quanta dor alguns deles ainda não deviamsentir por conta da incompatibilidade de suas partes? Alguns casos pareciam implantes, enquantooutros deveriam ser manipulações genéticas imprevisíveis, que resultaram em aberrações. O somdas trancas fez com que todos pulassem de susto, buscando um lugar seguro para se esconder nassombras. Apenas a menina ficou parada, na direção do feixe de luz que vinha de fora.— Bons dias, belos adormecidos... Vejo que já perceberam quem manda aqui. — Marta se viroupara a porta, deparando-se com um homem alto e gordo, que fazia sombra sobre ela. — Todos menosvocê. Deve ser a Senhorita Cepo... É um imenso prazer conhecê-la pessoalmente. Peço desculpas pelafalta de jeito e pelas péssimas instalações. Devíamos ter encontrado um melhor local para coloca-la,onde não tivesse tão detestáveis vizinhos. Mas não se preocupe, em breve terá uma vida muito diferente.— Do que está falando? — Os olhos furta-cores estavam bem abertos. — Onde estão minhamãe e o doutor?— O que disse? Desculpe... Não consegui ouvir. Você fala muito baixo. Talvez seja por ser assimtão pequena... Mas acho que deve apenas estar feliz com sua nova vida, não? — O homem se agachou,dando a impressão de que a qualquer momento sua calça se rasgaria e os botões do terno voariam paralonge. — Você terá uma nova família. Repleta de felicidades... — Seu sorriso era mais falso que umanota de centavos, e um arrepio percorreu a espinha de todas as quimeras. — Tentamos criar clones seus,mas foi impossível. Por alguma razão que ainda desconheço. Nada funciona... Então tentamos umagravidez artificial, o mesmo método utilizado para criar você. Mas também não deu frutos. É por issoque tive uma brilhante ideia e vim te buscar agora. Seja boazinha e venha comigo.Fosse o que fosse ela sabia que não seria em absoluto uma boa ideia ir com ele. Respirou fundo ecomeçou a correr, se enfiando no meio dos outros, que tentavam não ficar entre ela e o gigante de preto.— Volte aqui, sua pestinha! – ele berrou. Estava vermelho de raiva. Por que tudo tinha de serdifícil? Quando a alcançou enlaçou sua cintura com os dois dedos. Sentiu-se o próprio King Kong.Entre protestos e patadas, levou-a para fora, fechando a porta novamente. Lá dentro os animaisfaziam uma algazarra sem fim. Ele não sabia, mas estavam todos saltitantes por aquela criaturasem graça estar indo embora. Não a queriam ali por que acreditavam que ela não havia sofridocomo eles e não merecia ser parte de sua pequena comunidade, que era indigna de ser chamada damesma forma que eles. A inveja e a discriminação existiam até mesmo entre os animais... Ou seriaassim porque a maioria deles tinha algo de humano em seus genes? Essa seria realmente uma boapesquisa, se importasse para alguém.Passaram por muitos corredores iluminados parcamente por tubulações de cor alaranjada.Não eram lâmpadas normais, mas não adiantaria nada perguntar. Depois de muito caminhar chegarama uma sala cheia de computadores e fios pendurados de maquinas diversas e curiosas. Hans, ohomem gordo, jogou sua pequena carga sobre uma das macas próximas à parede sem cuidadoalgum, fazendo-a gritar de dor. Se não tivesse um organismo tão adaptável talvez tivesse quebradoalguns ossos com tamanha violência.— Cuidado com ela, seu animal! — Aquela voz era conhecida. Delina estava amarrada auma cadeira, do outro lado da sala, e era a voz da justiça a gritar nos ouvidos dos presentes. — Elapode não ser tão frágil quanto aparenta, mas ainda pode se machucar.110TATIANA RUIZ
— Sei... Segundo seus estudos ela jamais se machucou em todo seu tempo de vida, mesmocom tudo o que fizeram. Não seria agora a primeira vez.— Isso não impede que ela sinta dor!— E o que impede? Um sedativo extraforte? — Isso fez com que a aspirante a cientista secalasse e um choque estremecesse o corpo inteiro da garota na maca. — É... Eu sei muito mais do quevocê pensa. Por exemplo, sei que diversas vezes a doparam para tentar quebrar seus ossos; ao descobrirque eles se tornavam quase elásticos, forçaram para ver até que ponto poderia ir. E também...— Cala a boca! — A mulher gritou em prantos, pouco antes de levar um murro tão forte noestômago que a fez cuspir sangue.— Nunca mais me mande calar a boca — censurou Hans pausadamente, enquanto limpavacom um lencinho de renda os pingos de sangue de seu terno —, isso me deixa muito irritado.Marta! — Virou-se e caminhou outra vez até a maca, onde a diminuta criatura já se encolhiaassustada. — Eu adoraria ter tempo para todas aquelas coisas que vocês jovens sonham, comovestidos de noiva e véu com grinalda, mas não tenho. Então teremos de ser bem mais diretos. —Ela apenas balançou a cabeça, indicando confusão. Hans se afastou novamente, indo até a bancadaatrás de uma de suas roupas antigas. — Espero que isso ainda sirva para algo. — Ato seguido,abotoou em sua roupa, sem nenhum cuidado ou cerimônia, o microfone que ela sempre usava. —Agora creio que você já possa falar.— O que você quer de mim afinal? — foi a primeira coisa que saiu pelos alto-falantes.— Lindos e saudáveis filhotes... — A resposta a deixou atônita. — Como eu disse, tentamosreproduzir os experimentos que criaram você, sem sucesso... Mas a última de nossas tentativasunindo um óvulo seu, retirado enquanto você estava sedada, aos espermatozoides daquele que veioantes de você resultaram em um embrião que teria seguido adiante nas condições corretas... Ouseja: dentro do seu corpinho. Tudo o que precisa é abrigar esse bebê, cuja hipófise anterior bombardearemospara produzir mais hormônios do crescimento. Aos poucos vamos melhorar sua raçapara torná-la grande o suficiente para servir a nação.— O quê? Você é doente! Já viu o tamanho dela? Não seria capaz de suportar uma gestação!Ela poderia explodir! — Delina gritava, tentando se soltar. Não podia acreditar no que ouvia.Estava com medo que algo acontecesse à sua menininha...— Se eu fizer isso vai deixá-la ir? — Marta parecia resignada.— Sim. Eu prometo. — Novamente aquele sorriso que fazia gelar até o coração de um urso polar.— Então, está bem... — disse de cabeça baixa, enquanto ouvia o desespero da mãe. Deixouselevar até uma mesa próxima ao computador central, onde se encontrava a jaula do animal citado.Era peludo e tinha quase o dobro de seu tamanho, além de não parecer muito inteligente. Seusdentes eram quadrados e tortos e a boca fedia muito, deixando-a nauseada. Sua aparência era a deum roedor gigante, mas as mãos e pés possuíam cinco longos dedos, como os humanos ou osmacacos. Os olhos eram quase brancos, o que significava que por alguma falha genética ele erapraticamente cego. A luminosidade daquela parte da sala era bastante reduzida.— Olá... — A garota ensaiou um início de conversação, mas, ao ouvir o som pavoroso, quebem poderia ser uma risada, que o ser emitiu, simplesmente desistiu de qualquer assunto.— Agora deixarei os dois pombinhos a sós para que possam se conhecer. Toda sua, garanhão...— e saiu rindo.A PEQUENA MARTA CEPO111
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