estritamente a fórmula preconizada para o sucesso. Inovação, variações e criatividade não eramproibidas, mas postas de lado, ignoradas por aquela massa de jovens – e agora não tão jovens – quese acostumara a ver o mundo através de um buraco de fechadura.E como eu estava nisso tudo? Pior que antes, mas ainda com a cabeça fora d’água. Aos trintae três anos, tinha-me mudado para um conjugado pertencente à empresa, a cinco minutos da sede,e minha carga de trabalho passava facilmente das sessenta horas semanais. Ainda assim, tinha sortepor manter meu emprego, o qual agora incluía a supervisão das máquinas que tinham substituídovários de meus colegas. Os que restaram costumavam ir juntos a um bar e beber em silêncio,olhando para uma tela que transmitia as notícias julgadas relevantes pela Sinapse.Foi nessa tela que vi você deixar a prisão, beneficiada por uma lei de anistia para opositoresnão violentos do sistema. Não a entrevistaram, mas eu sabia que você continuava lutando por suacausa; que não deixaria de tentar impedir nossa sociedade de se transformar naquilo que, certa vez,você chamou de Admirável Mundo Novo. Eu sabia que era algo ligado à literatura, mas não tenteidescobrir mais nada a respeito. Já olhava para a palavra escrita dez horas por dia, seis dias porsemana, ainda que fossem apenas as especificações de alimentos quimicamente enriquecidos. E,quando podia me afastar daquilo, não era para um livro que eu queria olhar e sim para Max.Eu o conheci no bar, na noite em que anunciaram a sua libertação. A transmissão seguinte foi oboletim de meteorologia, quando todos se lembravam de ir até o balcão e pedir mais uma cerveja. Maxse aproximou, puxou conversa, logo trocamos nossas histórias e nossos contatos. Tínhamos muito emcomum, a começar pela idade, quase trinta e quatro, e pelo fato de termos começado a vida sem umimplante. Os pais dele haviam voltado atrás quando o filho estava no terceiro ano, mas eram modestos,de forma que Max só recebeu o pacote básico de instrução. Não conseguiu entrar numa universidadepara estudar veterinária, como sonhava, mas era inteligente e esforçado o bastante para manter seuemprego de gerente numa pet shop. Como ele, eu gostava de animais, preferia o campo à praia e tinhaum fraco por filmes antigos, e de afinidade em afinidade acabamos por decidir viver juntos.O casamento foi pro forma, apenas para recebermos três dias de folga, pois nem sequerteríamos a quem convidar para uma festa. Os pais de Max já tinham morrido, assim como meu pai,vítima de um câncer que você afirmava ter sido adquirido no laboratório; eu perdera o contato commeus avós e tios paternos. Quanto a você, tinha aparecido uma ou duas vezes nos noticiários,sempre falando em prol dos direitos humanos, embora de forma discreta, que ainda era tolerada.Não tornara a questionar a Sinapse, mas o que disse foi suficiente para despertar a má-vontade deMax, para quem os atos do Governo eram inatacáveis.Recém-casada, eu tinha coisas melhores a fazer com meu marido do que discutir por causa depolítica, mas a verdade é que no fundo eu concordava com suas críticas. Teria gostado de voltar aoassunto com você e refletir sobre os argumentos que refutara durante tantos anos por apoiarem suarecusa a me proporcionar o que eu pensava ser um bom futuro. No entanto, eu sabia que suacomunicação estava sendo vigiada, e não queria acarretar problemas para mim ou Max, de formaque quando fui visitá-la só falamos de amenidades. Você pareceu entender, passou o tempo todosegurando minhas mãos e me fitando com olhos brilhantes, e só quando nos abraçamos em despedidasussurrou uma frase fora de contexto.Tailandês, foi o que você disse. Leia com atenção. E antes que eu pudesse fazer qualquerpergunta você me afastou delicadamente em direção à saída.Dez dias mais tarde, fui chamada a um escritório da Diretoria de Defesa Nacional para prestardeclarações. Não me acusaram de nada, apenas perguntaram se tudo havia corrido bem emnosso encontro e o que eu pensava de suas ideias. Dei a resposta que se esperaria das pessoas sem92ANA LÚCIA MEREGE
o implante — que adoraria ter um, mas vinha me arranjando como podia sem ele — e fui dispensadasem mais perguntas. À noite, o noticiário informou que você conseguira burlar a vigilância,provavelmente com a ajuda da organização subversiva conhecida como Sol, e que o Governoprometia uma recompensa a quem tivesse informações sobre o seu paradeiro.Foi mais ou menos uma semana depois que recebi a mensagem.Suas palavras ao nos despedirmos pareciam sem nexo, mas logo compreendi o que significavame passei a ler com atenção redobrada os rótulos que vinham em tailandês. Foi uma alegria, masnão uma surpresa, encontrar palavras estranhas entre os ingredientes de uma ração para peixesornamentais: mãe, segura, Sol, resistência. Mais adiante, o que supus ser um meio de entrar emcontato: emergência, lixeira, parque. E na última linha um conselho: Escolha. Não o Questioneque você repetiu durante tantos anos. Talvez você soubesse que, chegando à idade adulta, eu já nãoia precisar que me abrissem os olhos. A situação era clara; eu podia ficar feliz por minha vida aindaser suportável ou me revoltar por não fazer parte da festa. Essa era a escolha possível. E, naquelemomento, eu ainda não sabia como agir.Foi a Sinapse que acabou decidindo por mim.Após um ano de vida em comum, Max e eu estávamos prontos para ter uma criança. Osnascimentos haviam diminuído muito, por isso o Governo tinha criado um pacote de incentivospara as mulheres que engravidassem, com redução das horas de trabalho, plano de saúde da MensSana com direito a remédios e exames e, é claro, o primeiro implante para o bebê. Max estavaanimado e me comoveu até as lágrimas, fazendo planos de trabalhar ainda mais duro para pagarescolas e dispositivos melhores. Queríamos proporcionar a ele ou ela o que não tivéramos, embora,é claro, também estivéssemos mais que dispostos a lhe dar todo o nosso amor.A gravidez foi confirmada numa quarta-feira. No sábado, recebi a visita de um agente desaúde, que fez um rápido teste de sangue, afirmou que teríamos um menino e me deu um vidro desuplementos vitamínicos. Eu tinha de tomar uma pílula por dia. Respondi que sim, é claro, e sorriao me despedir daquele homem sério e ao mesmo tempo solícito.Pouco depois, quando já tinha enchido um copo d’água para tomar a primeira pílula, a forçado hábito me levou a ler o rótulo colado no vidro, e me assustei com a lista de aditivos. Umasubstância, em especial, me deixou apreensiva, pois era usada em remédios que controlavam distúrbiosneurológicos, e eu me lembrava de ter traduzido bulas que proibiam terminantemente o usopor mulheres grávidas. Isso não pode fazer bem ao meu bebê, pensei, devolvendo a pílula ao vidro.E, ao mesmo tempo, soube a quem recorrer para confirmar a suspeita.O parque mencionado em sua mensagem só podia ser o da minha infância, aquele em quevocê me levava, quando bem pequena, para brincar na gangorra e no balanço. A lixeira estava lá,repintada de azul e pichada com um slogan do Governo. Olhei para todos os lados antes de atirarminha carta, escrita em tailandês por segurança e embrulhada num pedaço de plástico. Fiquei umpouco ali para disfarçar, depois voltei para casa e para Max, mas não tomei as pílulas suspeitas.Esperava uma resposta, e esta chegou dois dias depois, no mesmo esquema que misturava palavras-chaveaos textos dos rótulos que eu lia no trabalho.Não tome, dizia a mensagem. Substância nociva. A lista de conservantes do molho detomate prosseguia por mais umas linhas até chegar em outra advertência: Isso só começo AdmirávelMundo Novo.Ali estava, de novo, a citação, e dessa vez entendi que precisava encontrar a fonte. Uma buscana rede aberta de pesquisas não seria sensata. Nem em meus momentos mais rebeldes eu duvidei deO SOL DA RESISTÊNCIA93
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