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Revista_Black_Rocket_Ed5

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que o Governo, ou a Sinapse, nos mantinha sob vigilância, mas me lembrei da coleção de livros quevocê tinha deixado em nossa antiga casa e fui até lá num dos meus raros dias de folga. Sem me deterrecordando os bons tempos nem lamentar a poeira que cobria os móveis, localizei o livro que queriae o levei para ler num parque diferente, onde ninguém jamais me vira nem veria de novo.Você sempre me disse que a literatura tinha muitas finalidades. Entreter, informar, conduzirà reflexão e várias outras que não lembro agora. Posso dizer para que serviu a leitura daquele livro:para me dar um tapa na cara. Ali estava, bem debaixo do meu nariz, o plano que a Sinapse vinhalevando a cabo: o de uma sociedade dividida em escalões, determinados não apenas pelas posses epela educação, mas por intervenções que tinham começado com os pulsos elétricos e agora seencaminhavam para a manipulação genética. Não que a próxima geração já fosse ter seus Alfas,Gamas e Ípsilons, mas tudo levava a crer que as crianças seriam lenta e deliberadamente moldadasnesse sentido, até que, dentro de algumas décadas, chegássemos a uma situação semelhante à dolivro. Sem família, condicionados a tarefas mais ou menos especializadas desde antes do nascimento...e felizes. Sempre felizes. Era isso o que mais me angustiava.Algumas semanas se passaram sem que eu soubesse como agir. Ao fim desse período, oagente de saúde foi à minha casa, e um exame das substâncias em meu sangue revelou que eu nãotomara os suplementos. Menti, dizendo que perdera o vidro, e ele balançou a cabeça, dizendo queeu fora negligente e que seguir as prescrições para a gravidez era minha responsabilidade. Aindaassim, ele me daria uma segunda chance e me estendeu um novo vidro, dizendo que eu tratasse detomar as pílulas ou poderia perder o bônus concedido pelo Governo. Minha empresa saberia eficaria livre para me demitir se desejasse, e até Max perderia suas garantias, de forma que estaríamosarriscando nossa renda e o futuro do bebê. Ou por acaso eu não sabia da lei que estava emvotação, segundo a qual os pais sem condições financeiras perdiam o direito à guarda dos filhos?Ouvindo isso, Max ficou nervoso e prometeu que me faria tomar as pílulas, dia após dia, sempular uma só. Quando o agente se foi, tentei lhe explicar tudo, mas ele se recusou a me ouvir e aacreditar na minha história. Mostrar o livro, falar sobre você, tudo isso tornaria as coisas piores,por isso não insisti e fingi concordar com o discurso de Max sobre as boas intenções do Governo.Beijei-o por cima dos pratos sujos do jantar e fui para o trabalho, que naquela ocasião era no turnoda noite, ainda sem saber como escapar daquela situação.Por duas horas, enquanto traduzia mecanicamente as palavras na tela, refleti sobre as minhasopções, e a conclusão a que chegava era sempre a mesma. Eu precisava da sua ajuda, precisava que vocême dissesse como agir e para onde ir, e que fizesse isso o mais rápido possível. Dificilmente poderiaincluir Max nos meus planos. Embora lamentasse, não havia outro jeito se eu quisesse manter o bebê asalvo. Respirei fundo, baixando a cabeça por alguns segundos, e quando a levantei tive uma surpresa.Diante de mim, naquela sala onde eu passava a noite inteira a sós com as máquinas, estavauma jovem oriental, o rosto sem expressão, as mãos estendidas segurando uma bandeja com pacotesembrulhados em celofane. Um brinde especial, disse ela. Da empresa que importa os produtosda Tailândia. E, antes que eu pudesse reagir, deixou um dos pacotes sobre a minha mesa e saiu pelaporta dos fundos.Olhei para todos os lados antes de pegar o embrulho e desamarrá-lo com as mãos trêmulas.Tinha quase certeza de que era uma mensagem sua, mas também podia ser uma armadilha; eu nãosabia o quanto estava sendo vigiada. Minhas desconfianças, porém, se esvaneceram ao ver o conteúdodo pacote: biscoitos decorados com caracteres que, traduzidos, formavam meu apelido deinfância. Cada um deles era embalado com papel de arroz, que eu ia mastigando e engolindo àmedida que lia o texto escrito em tinta comestível. Dessa vez não eram apenas palavras, mas94ANA LÚCIA MEREGE

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