que o Governo, ou a Sinapse, nos mantinha sob vigilância, mas me lembrei da coleção de livros quevocê tinha deixado em nossa antiga casa e fui até lá num dos meus raros dias de folga. Sem me deterrecordando os bons tempos nem lamentar a poeira que cobria os móveis, localizei o livro que queriae o levei para ler num parque diferente, onde ninguém jamais me vira nem veria de novo.Você sempre me disse que a literatura tinha muitas finalidades. Entreter, informar, conduzirà reflexão e várias outras que não lembro agora. Posso dizer para que serviu a leitura daquele livro:para me dar um tapa na cara. Ali estava, bem debaixo do meu nariz, o plano que a Sinapse vinhalevando a cabo: o de uma sociedade dividida em escalões, determinados não apenas pelas posses epela educação, mas por intervenções que tinham começado com os pulsos elétricos e agora seencaminhavam para a manipulação genética. Não que a próxima geração já fosse ter seus Alfas,Gamas e Ípsilons, mas tudo levava a crer que as crianças seriam lenta e deliberadamente moldadasnesse sentido, até que, dentro de algumas décadas, chegássemos a uma situação semelhante à dolivro. Sem família, condicionados a tarefas mais ou menos especializadas desde antes do nascimento...e felizes. Sempre felizes. Era isso o que mais me angustiava.Algumas semanas se passaram sem que eu soubesse como agir. Ao fim desse período, oagente de saúde foi à minha casa, e um exame das substâncias em meu sangue revelou que eu nãotomara os suplementos. Menti, dizendo que perdera o vidro, e ele balançou a cabeça, dizendo queeu fora negligente e que seguir as prescrições para a gravidez era minha responsabilidade. Aindaassim, ele me daria uma segunda chance e me estendeu um novo vidro, dizendo que eu tratasse detomar as pílulas ou poderia perder o bônus concedido pelo Governo. Minha empresa saberia eficaria livre para me demitir se desejasse, e até Max perderia suas garantias, de forma que estaríamosarriscando nossa renda e o futuro do bebê. Ou por acaso eu não sabia da lei que estava emvotação, segundo a qual os pais sem condições financeiras perdiam o direito à guarda dos filhos?Ouvindo isso, Max ficou nervoso e prometeu que me faria tomar as pílulas, dia após dia, sempular uma só. Quando o agente se foi, tentei lhe explicar tudo, mas ele se recusou a me ouvir e aacreditar na minha história. Mostrar o livro, falar sobre você, tudo isso tornaria as coisas piores,por isso não insisti e fingi concordar com o discurso de Max sobre as boas intenções do Governo.Beijei-o por cima dos pratos sujos do jantar e fui para o trabalho, que naquela ocasião era no turnoda noite, ainda sem saber como escapar daquela situação.Por duas horas, enquanto traduzia mecanicamente as palavras na tela, refleti sobre as minhasopções, e a conclusão a que chegava era sempre a mesma. Eu precisava da sua ajuda, precisava que vocême dissesse como agir e para onde ir, e que fizesse isso o mais rápido possível. Dificilmente poderiaincluir Max nos meus planos. Embora lamentasse, não havia outro jeito se eu quisesse manter o bebê asalvo. Respirei fundo, baixando a cabeça por alguns segundos, e quando a levantei tive uma surpresa.Diante de mim, naquela sala onde eu passava a noite inteira a sós com as máquinas, estavauma jovem oriental, o rosto sem expressão, as mãos estendidas segurando uma bandeja com pacotesembrulhados em celofane. Um brinde especial, disse ela. Da empresa que importa os produtosda Tailândia. E, antes que eu pudesse reagir, deixou um dos pacotes sobre a minha mesa e saiu pelaporta dos fundos.Olhei para todos os lados antes de pegar o embrulho e desamarrá-lo com as mãos trêmulas.Tinha quase certeza de que era uma mensagem sua, mas também podia ser uma armadilha; eu nãosabia o quanto estava sendo vigiada. Minhas desconfianças, porém, se esvaneceram ao ver o conteúdodo pacote: biscoitos decorados com caracteres que, traduzidos, formavam meu apelido deinfância. Cada um deles era embalado com papel de arroz, que eu ia mastigando e engolindo àmedida que lia o texto escrito em tinta comestível. Dessa vez não eram apenas palavras, mas94ANA LÚCIA MEREGE
instruções completas sobre onde ir, quando ir e o que esperar se eu decidisse me unir ao Sol, aorganização que havia tirado você do país. Se aceitasse a ajuda deles, eu teria de me comprometercom a causa, o combate mundial a governos como o nosso e corporações como a Sinapse. Seriaperigoso, você ponderava; dificilmente haveria volta, mas, à exceção de Max, não havia muitopara o que eu quisesse ou pudesse retornar. A mensagem terminava com uma recomendação decuidado, um beijo e o seu apelido familiar, mas depois vinha um P. S., que eu mal consegui percebere ler antes de levar o papel à boca:Se puder, faça a diferença.Dobrei cuidadosamente o celofane do embrulho enquanto engolia o último bocado. Nãosabia o que pensar, ou melhor, não conseguia refletir como de costume, pois a verdade é que umaideia me ocorrera assim que li aquela frase e se fixara como uma garra em meu cérebro. Tenteiafastá-la, pesar outras possibilidades, mas ela se recusava a ir embora. Era como uma compulsão,cada vez mais forte, controlando minha mente e meus movimentos, e quando dei por mim já estavaobedecendo àquele impulso irresistível.Estava escrevendo.A maior parte dos rótulos que eu traduzia e enviava para as máquinas de impressão eraignorada pelas pessoas que adquiriam os produtos, mas naquela noite eu tinha algo especial: umapomada com hormônios que se destinavam a favorecer a fertilidade. Seria usada por mulheres quedesejavam ser mães, e eu sabia que a maioria delas leria as instruções para uso, por isso foi ali queinseri minha mensagem. Teve de ser bem resumida, mas contei sobre a droga no suplementovitamínico, afirmei que aquilo fazia parte de um plano muito mais amplo e alertei sobre o controleabusivo da Sinapse sobre nossa vida. Sem pausas que pudessem dar lugar ao arrependimento,mandei o texto para a impressora e saí no momento exato em que acabava o turno, deixando que amáquina da portaria escaneasse minha íris pela última vez.O que se seguiu foram os passos descritos no papel comestível. Peguei o metrô transurbanoe desci na última estação; de lá caminhei por meia hora a fim de chegar a uma loja de importadoschamada O Sol da Tailândia. Os donos idosos me reconheceram por meio de uma senha e melevaram para um cômodo nos fundos, onde fiquei até que, de madrugada, o velho me levou decarro até uma pequena pista de decolagem. Um antigo avião do exército me aguardava, pilotadopor um ex-militar de seus cinquenta anos, e agora faz três horas que estou voando rumo a um paísestrangeiro. Por segurança, ele não quer me dizer qual, mas respondeu corretamente às perguntasque você me disse para fazer, por isso estou tranquila. E mais que isso, como afirmei no início...Estou me sentindo feliz.Não sei ao certo o que me espera quando eu desembarcar. Tudo que sei é que não estaremosjuntas, ao menos não ainda. A organização concordou em me ajudar, mas me designou para umgrupo sediado em outro país, e meu contato com você será esporádico. Foi por isso que decidiescrever esta carta, que o piloto diz ter meios de fazer chegar às suas mãos. Através dela digo o quetalvez não possa dizer nos próximos tempos: que sempre me orgulhei de você ser quem é, por tudoo que disse e fez, e agora também posso me orgulhar daquilo que sou. E que darei o melhor demim, não apenas por meu filho, mas por todas as pessoas para as quais um pequeno ato de coragempode representar a diferença.O avião sobrevoa o oceano, um sol brilhante se infiltra pela janela. Em breve o ar da liberdadebeijará meu rosto.E assim, pela segunda vez, você me dará à luz.”O SOL DA RESISTÊNCIA95
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