Bubble Gum – Lolita Pille Página 1 - CloudMe
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janela, agasalhada no edredom furado, e torcer o pescoço para tentar alcançar no ar algumas<br />
notas de música do pianista defronte. E a beleza roubada da Sonata ao luar, a única a que<br />
tinha acesso, lembrança dolorosa de um mundo que havia esquecido, aquele dos sentimentos,<br />
dos sonhos, das ilusões, e o abandono durante alguns segundos, volto a ter de novo vinte e<br />
dois anos, e a sonata continua a me acalentar, para diminuir e se extinguir, e reabro os olhos<br />
para o silêncio e o frio, para a rua d'Amsterdam que está aos meus pés, para a realidade, e<br />
sinto vontade de pular.<br />
Sissi agarrava-se à minha decadência de todo o coração. Ver que eu afundava cada dia mais<br />
enchia seu coração de tamanha alegria que isso deve ter lhe provocado algum tipo de culpa, o<br />
que fez com que ela enfiasse na cabeça, não me tirar dali, não tinha poderes para tanto e<br />
sobretudo vontade, mas amenizar meus males arejando minhas idéias. Ela decidiu me fazer<br />
sair. Eu já não representava nenhum perigo para ela: eu era um dejeto.<br />
Nenhuma necessidade de saber mais a meu respeito, bastava olhar para as marcas no meu<br />
rosto em ruínas. Eu não tinha mais expressão, mais idade, as faces fundas, os dentes amarelos,<br />
os cabelos estragados e os olhos empapados, a dobra direita do meu lábio superior ficou lisa,<br />
retorcendo meu sorriso num curioso rictus mortis. Estava pele e osso. Para Sissi, eu era agora<br />
alguém com quem sair.<br />
E saía todas as noites. A gente ia de bar em bar, vestida como piranhas, cobertas de bijuterias,<br />
para encher a cara de uísque on the rocks espreitando a transa de uma noite. A gente<br />
encontrava os amigos de Sissi, velhos amigos, que ela só encontrava durante a noite, um<br />
bando de frustrados rancorosos que, dizia ela, iam me entender, compreender a minha<br />
história. Eles não entendiam nada, mas pagavam a conta. Era a única coisa, de qualquer forma,<br />
que esperava deles. Às vezes, um deles tinha uma queda por mim, sentava do meu lado e<br />
passava a noite inteira me entupindo de tequila gelada, de cocaína fajuta e cumprimentos<br />
surrados. E eu dava para ele, visto que tinha de dar. E eu dava nos banheiros, onde tinha a<br />
qualidade de ser rápido, ou nos carros emprestados. Ou nos quartos de empregada. Passava<br />
assim a madrugada, aquela hora bastarda na qual já não se espera mais nada da noite, na qual<br />
o próprio leito se torna assustador. Eles estavam normalmente meio brochas, e eu não<br />
conseguia nem enfiar uma camisinha direito, a gente trepava mal, apenas pelo hábito,<br />
escutando o esporro das latas de lixo sendo esvaziadas.<br />
E, no dia seguinte, a gente se via de novo, se sentava na mesma mesa. Eles resvalavam nos<br />
meus lábios me dando um beijo, soltando risadinhas, os maxilares erispados, um pouco<br />
constrangidos. Eu, nada.<br />
Eram um bando fantástico de fracassados, sopa no mel para a gente. Havia uma dezena de<br />
elementos permanentes e outra dezena de ocasionais. Junto com Sissi, fazíamos parte dos<br />
elementos permanentes. Sissi era uma fodedora de primeira de gente famosa, atriz fracassada,<br />
imbecil feliz.<br />
Eu também era uma atriz fracassada, para dizer o mínimo, eu saía do esgoto, era<br />
esquizofrênica. Essas eram as nossas credenciais, sem o que não teríamos sido aceitas por<br />
esses fracassados anônimos, a mais vagabunda das terapias de grupo. Paul tinha quarenta<br />
anos, era dono de um teatro pornô e passava a maior<br />
parte do tempo escrevendo cartas para o Ministário da Cultura pedindo o reconhecimento<br />
desta arte desconsiderada, Rick, aliás Ricardo, tinha a sorte de ter um papel recorrente de<br />
junkie numa série policial na M6, não era um papel fixo. Robert, cujo grande drama não era o<br />
fato de ele se chamar Robert, ainda que ele tenha nascido na segunda metade dos anos 70.<br />
Robert era roteirista e maldito, roteirista porque havia decidido assim e maldito já que fazia<br />
quase dez anos que, cada vez que colocava o ponto final na enésima versão do "roteiro do<br />
século", não demorava uma semana e outra pessoa escrevia exatamente o mesmo filme:<br />
mesmo argumento, mesmo desenvolvimento, mesmo titulo, ate os mesmos prenomes dos<br />
personagens e as cidades nas quais viviam. E o roteiro do século ia para a lata de lixo,<br />
juntamente com a moral do autor, até que ele tivesse uma nova idéia do século, que sofreria<br />
<strong>Bubble</strong> <strong>Gum</strong> <strong>–</strong> <strong>Lolita</strong> <strong>Pille</strong> <strong>Página</strong> 82