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Práticas de Leitura e Escrita - TV Escola

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O poeta Manoel <strong>de</strong> Barros, em seu livro “Exercícios <strong>de</strong> ser criança”, escreveu uma poesia sobre um menino que<br />

carregava água na peneira. Sua mãe lhe dizia que “carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair<br />

correndo com ele para mostrar aos irmãos”, que isso era o mesmo que “catar espinhos na água, que era o mesmo que<br />

criar peixes no bolso”. Porém, nos avisa o poeta, o menino “era ligado em <strong>de</strong>spropósitos” e quis, até mesmo, “montar<br />

os alicerces <strong>de</strong> uma casa sobre orvalhos”. Um dia, esse menino que “gostava mais do vazio do que do cheio”, pois dizia<br />

que os vazios eram maiores e “até infinitos”, <strong>de</strong>scobriu que “escrever seria o mesmo que carregar água na peneira”.<br />

Pois, no escrever, “viu que era capaz <strong>de</strong> ser noviço, monge ou mendigo ao mesmo tempo” e, assim, “apren<strong>de</strong>u a usar<br />

as palavras”. Percebeu que “podia fazer peraltice com as palavras e começou a fazê-las. Foi capaz <strong>de</strong> interromper o vôo<br />

<strong>de</strong> um pássaro, botando ponto no final da frase. Foi capaz <strong>de</strong> modificar a tar<strong>de</strong>, botando uma chuva nela.” E a mãe,<br />

que observava o menino, falou: “Meu filho, você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda.”<br />

Manoel <strong>de</strong> Barros nos fala da poesia e do fazer poético, comparando-os com a idéia <strong>de</strong> se carregar água em uma<br />

peneira. Assim, apresenta a poesia como uma criação que, aparentemente, não tem uma finalida<strong>de</strong> prática, objetiva,<br />

revelando-a como algo cujo valor não é palpável ou mensurável. Fazer poesia, <strong>de</strong> acordo com o poeta, é também “montar<br />

os alicerces <strong>de</strong> uma casa sobre orvalhos”, ou seja, é trabalhar com uma lógica que, no mais das vezes, encontra-se fora<br />

da esfera do rotineiro e do previsível. Fazer poesia é olhar a realida<strong>de</strong> do mundo sob um ponto <strong>de</strong> vista nem sempre<br />

objetivo. Fazer poesia é fazer peraltice com as palavras, ou seja, arranjá-las <strong>de</strong> modo que criem um mundo particular, <strong>de</strong><br />

tal forma que produzam <strong>de</strong>terminados efeitos em que lê. A poesia, como <strong>de</strong> resto toda a literatura, é a arte da palavra<br />

– sua essência é a linguagem esteticamente organizada, <strong>de</strong> modo a buscar a expressão e a comunicação.<br />

E por que, então, a poesia – uma criação que se assemelha a algo que, sob o ponto <strong>de</strong> vista da utilida<strong>de</strong><br />

prática, é <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> valor, é “carregar água na peneira” – é importante?<br />

A pergunta não é <strong>de</strong> fácil resposta.<br />

Aqueles que alguma vez na vida já foram tocados por versos, os que encontraram alegria, surpresa ou<br />

resposta para suas inquietações nos poemas, certamente não terão dificulda<strong>de</strong>s para sentir sua importância. Ao<br />

longo do tempo, poetas têm falado sobre a poesia e o seu valor. Vários leitores apaixonados têm <strong>de</strong>ixado seus<br />

<strong>de</strong>poimentos sobre esse tema, mas uma resposta clara e <strong>de</strong>finitiva, nunca.<br />

Em seu ensaio, “A literatura contra o efêmero”, o escritor e crítico italiano Umberto Eco nos fala, com outras palavras,<br />

o mesmo que a poesia <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros. Ao buscar respostas à pergunta sobre a importância da literatura, Eco afirma que<br />

ela, em princípio, “não serve para nada”, que é “gratuita”. Porém, em seguida, <strong>de</strong>senvolve seu raciocínio, explicando que esta<br />

não é uma questão tão simples e que o sentido <strong>de</strong> gratuida<strong>de</strong> das obras literárias faz com que elas se encaixem na esfera dos<br />

“bens imateriais”, alinhando-se a outros valores úteis, mas não no sentido prático, funcional. Pontuando as muitas funções da<br />

literatura, o crítico ressalta o papel que ela <strong>de</strong>sempenha na manutenção da língua como patrimônio coletivo e na apresentação <strong>de</strong><br />

uma organização estética da linguagem que, extrapolando finalida<strong>de</strong>s meramente informativas, convida o leitor ao exercício da<br />

imaginação e da recriação <strong>de</strong> significados. Nesta perspectiva, a poesia, assim como toda a literatura, oferece-nos a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> contato com nossa tradição literária e cultural, permitindo ao mesmo tempo, o resgate <strong>de</strong> nossas condições <strong>de</strong> criação, uma<br />

vez que nos convida a imaginar, a produzir sentidos e a estabelecer relações entre a palavra e o mundo.<br />

Atualmente, observamos gran<strong>de</strong>s transformações nas relações sociais, provocadas pelas regras do mercado, que<br />

buscam a produção <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> forma cada vez mais rápido, <strong>de</strong>senvolvendo, para isso, tecnologias eletrônicas<br />

que permitam a aceleração da produção. Essa lógica que ignora o ritmo da natureza humana, vem provocando um<br />

sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>senraizamento do homem em relação ao tempo, cada vez mais acelerado, e também em relação ao<br />

espaço, que prioriza a virtualida<strong>de</strong> sobre o contato real. Assim, o sentimento <strong>de</strong> pertencimento, <strong>de</strong> compartilhamento<br />

<strong>de</strong> valores, as formas <strong>de</strong> relação e <strong>de</strong> comunicação tradicionais modificam-se e se problematizam. Esse quadro tem<br />

sido apontado como uma das causas para o aumento <strong>de</strong> distúrbios ligados à solidão, à sensação <strong>de</strong> não pertencimento,<br />

falta <strong>de</strong> saída e pânico frente ao mundo, bem como às dificulda<strong>de</strong>s no estabelecimento <strong>de</strong> contato e <strong>de</strong> comunicação.<br />

Um exemplo significativo <strong>de</strong>sse sintoma <strong>de</strong> perda da noção <strong>de</strong> pertencimento e, ao mesmo tempo, da profunda<br />

necessida<strong>de</strong> que o ser humano tem <strong>de</strong> fazer parte <strong>de</strong> algo, é o número imenso <strong>de</strong> usuários <strong>de</strong> “sites” <strong>de</strong> comunicação.<br />

Um <strong>de</strong>les, o “Orkut” , tem em torno <strong>de</strong> 7.400.000 usuários (o Brasil representa aproximadamente 73% <strong>de</strong>ste total e,<br />

atualmente, está em primeiro lugar em número <strong>de</strong> pessoas cadastradas) e está organizado, exatamente, em milhares <strong>de</strong><br />

comunida<strong>de</strong>s criadas por seus usuários e em torno das quais se agrupam, se encontram e se comunicam virtualmente.<br />

Mas, voltando à poesia, como pensá-la nesse contexto? O que ela teria a oferecer às pessoas neste cenário?<br />

Ao tecer mundos com a linguagem, ao apresentar a palavra sensível ao leitor, a poesia toca, emociona, mobiliza<br />

o ser humano, tanto no nível racional quanto no emocional, possibilitando uma vinculação diferenciada do<br />

homem consigo mesmo, com o outro e com o mundo.<br />

A poesia apresenta, portanto, características vinculadoras e agregadoras, que permitem não apenas o<br />

encontro das pessoas com sua própria subjetivida<strong>de</strong>, mas também a construção <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> re<strong>de</strong> invisível,<br />

ligando aqueles que compartilham a experiência da fruição poética. Assim, a experimentação da poesia po<strong>de</strong> ser<br />

*Esse texto se integra ao boletim da série “A palavra reinventada seus usos na educação”, setembro/2005.<br />

Praticas <strong>de</strong> <strong>Leitura</strong> e <strong>Escrita</strong><br />

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