Práticas de Leitura e Escrita - TV Escola
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A palavra<br />
Um renomado professor japonês, convidado por um grupo <strong>de</strong> psicanalistas oci<strong>de</strong>ntais, começou sua série <strong>de</strong><br />
palestras com a seguinte observação: “O Oci<strong>de</strong>nte é loquaz! O Oriente, silencioso!”.<br />
Sem atribuirmos juízo <strong>de</strong> valor à afirmação, já que para isso seria necessário examinar tanto o contexto em que ela<br />
se <strong>de</strong>u quanto o real significado do que foi dito pelo professor e filósofo, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar uma questão<br />
aí colocada, quando pensamos nas condições da comunicação – logo, da comunicação pedagógica – na atualida<strong>de</strong>.<br />
Nunca falamos tanto, nunca produzimos tanta informação, nunca tivemos acesso a tantos e tão diferentes assuntos<br />
com a rapi<strong>de</strong>z que temos hoje, e tudo isso em escala planetária. No entanto, talvez nunca, também, tenhamos vivido<br />
uma época tão esvaziada <strong>de</strong> sentidos quanto a atual, época em que temos a impressão <strong>de</strong> que se fala muito, mas que se<br />
diz pouco, época em que somos bombar<strong>de</strong>ados por informações, mas que, talvez até por instinto <strong>de</strong> preservação, não<br />
prestamos atenção na maioria das coisas que nos são ditas e repetidas uma, duas, três, infinitas vezes. Ou seja, se quem<br />
fala não diz, quem ouve não escuta, a comunicação acaba virando um puro gesto mecânico <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> sinais e<br />
não <strong>de</strong> trocas efetivas <strong>de</strong> significados, tal qual na canção Sinal fechado, <strong>de</strong> Paulinho da Viola.<br />
Alguns autores falam em angústia, em estresse informacional. A atual febre do celular não seria senão a ponta <strong>de</strong> um<br />
enorme iceberg, muita informação, pouca significação, o que para Paul Virilio, estudioso das questões <strong>de</strong> comunicação em nossa<br />
época, traduz-se num paradoxo, com funções estratégicas do ponto <strong>de</strong> vista político: informa-se muito para <strong>de</strong>sinformar.<br />
Nesse aspecto, vivemos uma séria crise. Se «no princípio era o verbo», hoje o verbo se banaliza, massifica, transformado<br />
em produto, mercadoria vendida a varejo no mercado globalizado. Se produzido em língua inglesa, o produto vale mais, já<br />
que mercadorias criadas em outras línguas já nascem com um valor <strong>de</strong> troca inferior, pois não oferecem acesso universal. São<br />
para uso local e, a não ser os obstinados ou resistentes, quase ninguém, por mais importantes que sejam os seus conteúdos,<br />
tem condições <strong>de</strong> gastar horas e horas <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> uma língua <strong>de</strong> comunicação restrita num mundo globalizado:<br />
time is money, inclusive o tempo <strong>de</strong> aprendizagem. Acabam, portanto, prevalecendo não apenas os conteúdos, mas os códigos<br />
dados, estabelecidos, hegemônicos. Daí a outra febre, a dos cursos particulares <strong>de</strong> inglês, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>les sem ter a menor<br />
base, oferecendo mágicas, como a aprendizagem da língua em algumas poucas lições e sem nenhum esforço, prometem eles.<br />
E ai <strong>de</strong> quem não apren<strong>de</strong> a língua global. Corre o risco <strong>de</strong> ficar confinado ao local, sem circulação na cultura planetária,<br />
vazada muitas vezes num idioma novo, reduzido, instrumental, que não é também o rico e belíssimo inglês <strong>de</strong> Shakespeare,<br />
<strong>de</strong> Poe ou <strong>de</strong> Withman. A época é outra, os objetivos e os valores são outros, a língua, fatalmente, é outra, também. Mais<br />
atual, mais mo<strong>de</strong>rna, mais prática, justificam os apologistas da nova or<strong>de</strong>m mundial.<br />
De mágica, sagrada, instituidora, a palavra se torna instrumental, objetiva, profana, esvaziando-se <strong>de</strong> seus múltiplos<br />
aspectos originais e constitutivos. Em <strong>de</strong>corrência, vem sendo pronunciada em volumes e quantida<strong>de</strong>s cada vez maiores,<br />
mas, por meio <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> procedimentos implícitos ou explícitos do mercado <strong>de</strong> objetos e <strong>de</strong> idéias, vem per<strong>de</strong>ndo<br />
a riqueza <strong>de</strong> que é dotada, reservando a sua condição <strong>de</strong> sopro criador do mundo e gerador <strong>de</strong> vínculos intersubjetivos<br />
consistentes com o outro, consigo mesmo, com a existência, a momentos localizados, fragmentados, difusos.<br />
Desse modo, reduzidas cada vez mais às suas inequívocas e necessárias dimensões utilitárias, com finalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
sustentar a produção, a circulação e o consumo das mercadorias – das quais ela própria passou a ser uma das principais – as<br />
palavras são roubadas <strong>de</strong> sua dimensão significativa essencial e distintiva – falar nos distingue. Ou melhor, simplesmente,<br />
dizer não à tagarelice, que às vezes até po<strong>de</strong> ser divertida, mas isso algumas espécies não humanas são capazes <strong>de</strong> fazer – falar,<br />
não dizer. Repetir, repetir, repetir, in<strong>de</strong>finidamente, certos sons. E não só as espécies vivas são capazes disso. Há, atualmente,<br />
várias máquinas que falam. Algumas <strong>de</strong>las até chamadas <strong>de</strong> secretárias são. Eletrônicas, é bem verda<strong>de</strong>, mas secretárias.<br />
Sob esse ponto <strong>de</strong> vista, torna-se importante revisitar a Palavra, ‘ressignificá-la’ nos quadros <strong>de</strong> nossa contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
Não <strong>de</strong> qualquer forma, <strong>de</strong> qualquer maneira. É preciso revisitá-la com todas as pompas e circunstâncias indicadas por<br />
quem enten<strong>de</strong> do assunto. Drummond é um <strong>de</strong>les. Aconselha espreitar as palavras, escutá-las, seduzi-las, saboreá-las, mesmo<br />
se às vezes o gosto é amargo e a tarefa nem sempre seja fácil. As palavras são opacas, não se entregam nem se ilu<strong>de</strong>m com as<br />
falsas promessas. Não aceitam ser passivas, usadas apenas para atos <strong>de</strong> compra e venda, <strong>de</strong> consumo, <strong>de</strong> mera negociação<br />
mercantil. Elas também nos espreitam, escutam-nos, seduzem-nos, saboreiam-nos. Sob a “face neutra”, escon<strong>de</strong>m, cuidadosamente,<br />
tesouros esplêndidos e inesperados, que não são entregues senão parcialmente. Elas são ativas, nos interrogam,<br />
Praticas <strong>de</strong> <strong>Leitura</strong> e <strong>Escrita</strong><br />
“Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta,<br />
sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe <strong>de</strong>res: Trouxeste a chave ?”<br />
(Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Procura da poesia. In: A rosa do povo).<br />
A palavra é chave mestra da Educação. Dados os processos que a envolvem na atualida<strong>de</strong>, não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
estar em dificulda<strong>de</strong>s também nas situações escolares. Os antigos mestres nem sempre são escutados, disputam com outros<br />
meios, o interesse dos discípulos, na verda<strong>de</strong>, já não existem como tais, são hoje especialistas, com domínio da palavra<br />
técnica, quando não burocrática. Per<strong>de</strong>ram, enfim, a posição privilegiada que a tradição lhes conferia, confiando a eles os<br />
<strong>de</strong>stinos dos discursos escolares. O “magister dixit” foi posto em causa, bem como a palavra, a verda<strong>de</strong>, a voz única.<br />
*Esse texto se integra ao boletim da série “A palavra reinventada: seus usos na educação”, setembro/2005.<br />
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