Práticas de Leitura e Escrita - TV Escola
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As palavras, em tais condições, acabam assumindo feições <strong>de</strong> violência simbólica, que só se encerra com o<br />
toque do <strong>de</strong>spertador, avisando que a aula particular chegou ao fim. Não há na situação um mínimo <strong>de</strong> con<strong>de</strong>scendência,<br />
<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> complacência com o mundo do outro, suas dores, suas experiências. Não há humanida<strong>de</strong>,<br />
tudo é frio, o olhar, os gestos, a voz, as palavras. Tudo é burocrático, funcional, <strong>de</strong>finitivo. É preciso fazer, é<br />
preciso ensinar, é preciso apren<strong>de</strong>r. Nenhuma surpresa, nenhuma incerteza, nenhum talvez... Será... Quem sabe?<br />
As palavras vão sendo repetidas como em todas as outras aulas particulares <strong>de</strong> Matemática, <strong>de</strong> Português, <strong>de</strong> História<br />
ou <strong>de</strong> Geografia que transcorrem em salas <strong>de</strong> jantar pelo mundo afora. Não há diferenças, tudo é idêntico, a<br />
mesma massa. Tudo é informe, incolor, indolor, a <strong>de</strong>speito das perdas, das sauda<strong>de</strong>s e das dores causadas pelas<br />
separações irremissíveis. Sempre os mesmos tons, as mesmas sonorida<strong>de</strong>s e intensida<strong>de</strong>s, as mesmas palavras.<br />
Nenhum cuidado, nenhum cultivo, nenhuma produção <strong>de</strong> sentidos. Como entrou, Maria sai. Como entrou, a<br />
professora particular sai. Alheias, silenciosas, sem palavras que aproximem seus mundos, que as vinculem, apesar<br />
da pretendida experiência <strong>de</strong> aprendizagem comum.<br />
Só, as lembranças são as portas <strong>de</strong> salvação <strong>de</strong> Maria. Lá, no fundo da memória, estão as palavras que a<br />
consolarão, que cicatrizarão suas feridas, que lhe permitirão vislumbrar sentidos que aula particular, na sua<br />
insensibilida<strong>de</strong>, é incapaz <strong>de</strong> fazer.<br />
As palavras encontradas na experiência registrada na memória, as palavras que vêm do circo, dos afetos,<br />
dos pais mortos são, pois, rumo, sentido e caminho, ao contrário das encontradas na aula particular. Elas são<br />
possibilida<strong>de</strong>s efetivas da troca, <strong>de</strong> diálogo. São condições indispensáveis à palavra significativa, já que esta<br />
supõe sempre a existência do outro e da cultura.<br />
Palavra dialógica.<br />
A tradição escolar é ‘monológica’. Ou seja, reinou na <strong>Escola</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início, o “magister dixit”, isto é,<br />
a voz do professor – e das <strong>de</strong>mais autorida<strong>de</strong>s escolares, é bom que se diga e faça justiça. Na realida<strong>de</strong>, professores<br />
duros na queda nunca estiveram sozinhos em suas posições autoritárias. Ao contrário, estavam apoiados<br />
em um estado <strong>de</strong> coisas que incentivava e <strong>de</strong>mandava palavras <strong>de</strong> mão e sentido únicos. Prova disso são aqueles<br />
que, furando o cerco do excesso gratuito <strong>de</strong> rigor, mostravam-se camaradas, buscando interlocução com suas<br />
turmas, tinham que respon<strong>de</strong>r, invariavelmente, por conivências com liberalida<strong>de</strong>s não permitidas e não esperadas,<br />
especialmente se ocorrências fora do comum perturbassem a monótona or<strong>de</strong>m escolar. Eram culpados<br />
por quererem se aproximar do universo <strong>de</strong> seus alunos, por <strong>de</strong>sejarem conversar, trocar experiências e saberes<br />
com eles. Quem viu o filme A socieda<strong>de</strong> dos poetas mortos sabe do que estamos falando. Quem não viu, vale a<br />
pena conferir.<br />
A escola tradicional repousava e incentivava a palavra fechada e acabada. Nesse sentido, não promoveu<br />
– ao contrário, temeu – a polissemia, condição da expressão própria e particular. Sua relação com as palavras<br />
era funcional, pragmática, utilitarista. Tratava-se <strong>de</strong> transmitir a<strong>de</strong>quadamente conteúdos dados, prontos e<br />
– <strong>de</strong>sculpem o termo, mas é o que me parece mais a<strong>de</strong>quado – requentados. Isto é, nesse tipo <strong>de</strong> escola, falava-se<br />
muito, mas dizia-se pouco. Ouvia-se muito, mas escutava-se quase nada. Sim, porque falar não é dizer,<br />
da mesma forma que ouvir e escutar não são a mesma coisa, embora também se impliquem. Falar e ouvir são<br />
atos físicos, que po<strong>de</strong>m ser realizados por animais ou máquinas. Um papagaio, assim como um gravador, um<br />
computador, um robô, po<strong>de</strong> falar ou ouvir. Não po<strong>de</strong>, contudo, dizer ou escutar, isto é, investir inteligência<br />
diferenciada, criativida<strong>de</strong>, “pessoalida<strong>de</strong>” em seu discurso. Po<strong>de</strong> falar, emitir, reconhecer sinais, mas é incapaz<br />
<strong>de</strong> articular signos, relacioná-los, inferir, antecipar, projetar, mudar cursos previstos, <strong>de</strong>ntre outras ativida<strong>de</strong>s<br />
cognitivas complexas, acessíveis apenas à espécie humana.<br />
Rever os modos <strong>de</strong> uso, o lugar, o estatuto da palavra na escola, é condição, portanto, que se impõe a<br />
todos os educadores e cidadãos envolvidos com a educação significativa, capaz <strong>de</strong> mobilizar e promover forças<br />
criativas necessárias e indispensáveis a nosso estar no mundo.<br />
Convém lembrar que, se no princípio era o verbo, esse era um verbo inaugural, que separou a luz das<br />
trevas, que constituiu, que inventou o universo. Ou seja, não se trata <strong>de</strong> apenas falar na escola, acreditando-se<br />
que, com isso, a tarefa esteja cumprida.<br />
Dialogar significa troca <strong>de</strong> sentidos, <strong>de</strong> significados, não simplesmente intercâmbio <strong>de</strong> sinais, <strong>de</strong> matéria<br />
sonora, <strong>de</strong> ruídos. Atualmente, nossas escolas são excessivamente barulhentas, algumas chegam a graus insuportáveis<br />
<strong>de</strong> poluição sonora. Em tais ambientes, simula-se o diálogo, mas o que acontece é a gritaria, o excesso<br />
<strong>de</strong> estímulos, a falta <strong>de</strong> comunicação. É preciso, assim, que a ecologia sonora seja revista, que seja criado um<br />
clima estimulante e capaz <strong>de</strong> acolher a palavra dialogada, o trânsito efetivo dos significados, da palavra revivida<br />
e regenerada. Como nos lembra Bethelheim, somos seres do significado. Necessitamos, por isso, não da<br />
palavra massificada, repetitiva, monótona, mas da palavra criativa, vivificante e geradora; da palavra investida<br />
<strong>de</strong> sentidos, significativa. Barthes chama a essa palavra <strong>de</strong> escritura: aquela que reúne saber e sabor, aquela que<br />
institui o novo, o inesperado, a festa, a criação. Nesse sentido, dialogar é inventar e reinventar, é inventar-se e<br />
reinventar-se, é fazer e se refazer com e pela palavra. Preste atenção às palavras, ouça o que elas têm a dizer,<br />
recomenda-nos ninguém menos que Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Convém escutar os poetas. Eles possuem<br />
um po<strong>de</strong>r especial <strong>de</strong> dizer e <strong>de</strong> escutar o avesso do avesso das palavras. Talvez por isso, tal como os mágicos,<br />
fazem milagres com elas.<br />
Praticas <strong>de</strong> <strong>Leitura</strong> e <strong>Escrita</strong><br />
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