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Práticas de Leitura e Escrita - TV Escola

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com heróis que esqueceram a palavra salvadora? Teseu, por exemplo, capaz <strong>de</strong> vencer o monstruoso Minotauro, não acabou<br />

vencido pela tragédia, ao esquecer as recomendações que lhe foram feitas, antes <strong>de</strong> partir para a luta que o tornou célebre? O<br />

esquecimento é, para os gregos, forma <strong>de</strong> profanação e, como tal, <strong>de</strong>ve ser inevitavelmente punido.<br />

Palavra verda<strong>de</strong>.<br />

Se é possível vislumbrar vínculos entre as palavras e as realida<strong>de</strong>s por elas nomeadas, eliminar todas as distinções entre os<br />

nomes e as coisas, acreditando que basta pronunciar uma palavra para que seu conteúdo passe a existir concretamente, no mundo<br />

físico, significa um modo <strong>de</strong> compreensão e <strong>de</strong> relação especial com a palavra que, paulatinamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média, vem<br />

per<strong>de</strong>ndo força na cultura oci<strong>de</strong>ntal. Cada vez mais, as palavras nos soam distantes, alheias, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> nós. Cada vez mais<br />

precisamos <strong>de</strong> provas, <strong>de</strong> registros, <strong>de</strong> contratos, <strong>de</strong> certidões, <strong>de</strong> documentos, <strong>de</strong> CPF e <strong>de</strong> RG. A expansão da escrita, segundo<br />

alguns autores, <strong>de</strong>ve sua sorte, em boa parte, a tal <strong>de</strong>scrédito. Comerciantes, que estão na base da nova classe burguesa, que se<br />

constituiria e se tornaria hegemônica com o <strong>de</strong>clínio do mundo feudal, viajavam constantemente em busca <strong>de</strong> mercadorias, negócios<br />

e riquezas. Precisavam registrar pedidos <strong>de</strong> clientes distantes e dispersos pelos diferentes portos e cida<strong>de</strong>s do mundo, bem<br />

como se assegurar <strong>de</strong> que receberiam por suas mercadorias. Não era possível confiar, portanto, apenas na memória e na palavra<br />

oral. Além disso, diferentemente dos feudos, nem todos partilhavam das mesmas experiências e não era difícil tomar o dito pelo<br />

não dito. Para evitar surpresas, era preciso a palavra registrada e documentada, o contrato. Daí a aludida expansão da escrita, fato<br />

que significaria uma mudança <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> face às palavras. No caso, ao que parece, promessa só <strong>de</strong> boca já não era dívida.<br />

Apesar, contudo, <strong>de</strong> tais influxos e <strong>de</strong> sua marcha ascen<strong>de</strong>nte, em especial sob o império do racionalismo iluminista,<br />

a concepção mágica <strong>de</strong> origem religiosa, que não distingue os nomes e as coisas a que eles se referem, continua<br />

mais viva do que se pensa na cultura. Assim, do mesmo modo que a mais profunda <strong>de</strong>scrença atinge parte da população,<br />

diante, por exemplo, das mensagens da mídia, a crença <strong>de</strong>smedida e irracional em tais mensagens também assalta importantes<br />

segmentos populacionais, levando-os a acreditar nas palavras, pelo simples fato, por exemplo, <strong>de</strong> elas terem sido<br />

pronunciadas no rádio, na televisão ou <strong>de</strong> estarem impressas nas páginas <strong>de</strong> um livro, <strong>de</strong> uma revista, <strong>de</strong> um jornal, no<br />

Diário Oficial. Há até uma expressão jocosa, que zomba da credulida<strong>de</strong> ingênua <strong>de</strong> brasileiros que acreditam piamente<br />

nas palavras publicadas por um conhecido jornal estrangeiro: <strong>de</strong>u no New York Times!<br />

Desse modo, por mais que avance a consciência <strong>de</strong> que as palavras não se confun<strong>de</strong>m com as coisas a que se referem<br />

– diz-se que elas não são reflexo, espelho da realida<strong>de</strong>, mas antes uma realida<strong>de</strong> elas próprias, portadoras <strong>de</strong> sentidos e significados<br />

– continuamos tomando freqüentemente a versão pelos fatos, numa indicação clara <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong> revelação<br />

da verda<strong>de</strong> das coisas, <strong>de</strong> enfrentamento e <strong>de</strong>safio da opacida<strong>de</strong> da realida<strong>de</strong> que jamais se entrega e <strong>de</strong>snuda completamente:<br />

lutar com palavras/é a luta mais vã/ entanto lutamos/ mal rompe a manhã, ensina-nos mestre Drummond. Força reguladora,<br />

a palavra se interpõe entre nós e o mundo, entre nós e nossos sentimentos, pensamentos, afetos e emoções, constituindo-os e<br />

nos constituindo, criando e sendo criada, num movimento permanente e dinâmico em que se torna difícil a separação entre<br />

sujeito e objeto, criador e criatura, eu e o outro. Por isso, a palavra é cantada, celebrada, exortada, apesar das dificulda<strong>de</strong>s<br />

que possa nos ocasionar, das mentiras, das manipulações e das feridas que po<strong>de</strong> causar. Re<strong>de</strong>nção e con<strong>de</strong>nação, revelação e<br />

mistificação, criação e <strong>de</strong>struição, “por tuas palavras, tu serás salvo; por tuas palavras tu serás con<strong>de</strong>nado”, a palavra, apesar <strong>de</strong><br />

sua ambigüida<strong>de</strong> natural, é força fundamental, única e insubstituível nos processos <strong>de</strong> humanização.<br />

Palavra exata.<br />

Praticas <strong>de</strong> <strong>Leitura</strong> e <strong>Escrita</strong><br />

Sol e chuva, casamento <strong>de</strong> viúva.<br />

Chuva e sol, casamento <strong>de</strong> espanhol!<br />

Alguém saberia dizer o significado <strong>de</strong>stas palavras? Difícil. Na realida<strong>de</strong>, se cada uma tem um sentido, juntas<br />

não têm sentido algum. E é justamente aí que está o sentido, na falta <strong>de</strong> sentido, no nonsense. Em outros termos:<br />

nessa fórmula verbal, está em causa, um conjunto <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong>stinadas a promover brinca<strong>de</strong>iras com os sons,<br />

com os ritmos e com as imagens e proporcionar a experiência da dimensão sensível da língua, razão suficiente para<br />

explicar sua permanência na cultura.<br />

Em tal caso, as palavras chamam a atenção para as próprias palavras, lembram-nos <strong>de</strong> sua importância fundamental,<br />

<strong>de</strong> sua dimensão concreta, <strong>de</strong> sua condição única, insubstituível e prazerosa <strong>de</strong> reunir sentidos e sentido.<br />

Em tal construção, os termos não po<strong>de</strong>m ser trocados, pois isto representa a perda do ritmo, das sonorida<strong>de</strong>s, dos<br />

movimentos e das imagens. A graça, o sabor e o ludismo ruiriam se substituíssemos as palavras aí existentes por<br />

sinônimos. Imaginem, por exemplo, o termo casamento trocado por núpcias:<br />

Sol e chuva, núpcias <strong>de</strong> viúva.<br />

Chuva e sol, núpcias <strong>de</strong> espanhol!<br />

Sem graça, não é? Nada a ver. Os termos aí são precisos, escolhidos sob medida, não pelo que significam em si, mas<br />

pela combinação <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong>s, ritmos e cadências que promovem, formando um todo lúdico e divertido. Para tanto,<br />

cada palavra é especial, com seus rumores específicos. Como trocar termos que se completam, que rimam entre si, uva<br />

<strong>de</strong> chuva, com o uva <strong>de</strong> viúva, ol <strong>de</strong> sol com o ol <strong>de</strong> espanhol, sem contar a inversão sol e chuva/chuva e sol, a repetição<br />

casamento <strong>de</strong>, além <strong>de</strong> outros elementos que constituem o todo.<br />

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